sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Arte Rupestre

   Por causa da terra ou das margens, do gado ou do homem,parece que corre o rio.Não finge,apenas cumpre.
  O que calam as margens,o boi olha,o homem vê,o rio atesta.
  Assemelha a um fluxo. Desestabiliza.
  Os torrões, olham, o animal bebe.
  O homem apropria-se,inventa cântaros.
   Não os ignora o rio.
  Desintegra-se em água,desmente o mundo.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Luz e Sombra

   Desta vez posto fotografias tiradas por mim. Todas elas têm em comum o tema: LUZ E SOMBRA







.



quarta-feira, 28 de setembro de 2016

BELO

Conhece,
Yukio Mishima,
as intermitências do belo,
o seu aporte,
as incongruências
do harmônico,
as discrepâncias do íntimo,
as armadilhas
do que imanta,
se retrai e funda,
os perigos do sublime
e do intangível
nos orgasmos do medo.
Belo,
vitória a reiterar
as cavidades da aurora
em rupturas
de espanto,
a embalar pesadelos
de parvos e aturdidos
na incontinência das pálpebras,
o renitente a negar-se
em saciedade de fomes.
Belo,
susto e clamor
do impiedoso
na contemplação onívora
das inquietudes,
presença transcendente
do que acontece sem catecismos.
Belo,
o indício
do que será sempre deposto
na rapacidade da ruína,
doação que exige
a mendicância irrestrita
da entrega
em lapidações de vômito,
incinerar de formas
no que se funda
sem fundações,
cópia que inaugura
as mendicâncias do único.
repicar dos sinos
da agonia e da morte
no  calabouço
das transmigrações.
Mishima,
a desvendar
saberes e despedidas
na fluidez do imóvel,
amparo e aresta
a polir o remoto
na carne feroz da ausência.

(Desenho: Cleber Pacheco)



terça-feira, 27 de setembro de 2016

Carte de Adolfo Bioy Casares a Jorge Luis Borges

   
                                                                                                            Amigo,

 Bem sei que não mais você  próprio lê as suas cartas,mas estou ciente de que possui quem as leia, traduzindo cada sinal,sílaba e palavra em sons e que poderá,assim,convertê-los em imagens suas,muito  particulares,com peculiaridades somente possíveis  às suas idiossincrasias, e, uma vez tendo feito isso, esta minha carta simplesmente deixará de existir, transmutada em indefiníveis hieróglifos e arcaicas escrituras, incompreensíveis aos outros,todavia perfeitamente claras apenas para si mesmo.
   Sei,portanto,que esta carta perderá por completo o sentido para mim, nunca tendo obtido signficado algum para o ser intermediário que a lerá  para você e que Adolfo terá alquimicamente transmigrado para Borges.
   Isso quer dizer o seguinte: esta carta não existe,portanto jamais poderá ser lida por alguém,ou seja,nunca a receberá, obrigando-me,enfim,a tentar escrevê-la. Caso contrário, acabaria por tornar-me um sonho de Borges.

                                                                                                    Atenciosamente,
                                                                                                   Adolfo Bioy Casares.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O Sétimo Dia

1

   Minha mãe veio me acordar (eu dormira o dia inteiro).Abri os olhos.Sobre o guarda-roupa,a vela apagada que ela colocara.Esperar seis dias dissera.No sétimo,se Deus quiser,Ele virá.Eu aguardava a vinda dEle dormindo.Lá fora,a mulher ,à minha espera,gritava: Seu filho não pode demorar.Da outra vez me atendeu na mesma hora.Foi muito bonito.Preciso dele logo.
    Minha mãe tentava proteger-me,dizendo: Você é quem sabe.Vai até lá ou espera o segundo dia.

                                                      2

    Apagada ainda,a vela sobre o guarda-roupa.Deitado,ouvia a conversa das duas mulheres no pátio,absortas nos próprios comentários.Tinham pressa e problemas.Queriam me ver.Queriam auxílio.
   Mais seis dias e tudo estaria resolvido.Era preciso paciência.Fechei os olhos.
   Minha mãe passou mais uma vez pelo quarto para efetuar sua habitual vistoria e retirou-se.
   Deus ainda não viera.

                                                            3

   Precisamos de sua ajuda gritaram as duas mulheres e mais o homem que chegara recentemente.Não podemos ficar aqui para sempre.
  Exigiam minha presença.Mas não poderia sair antes do acontecimento.Nem poderia explicar-lhes coisa alguma.Nunca entenderiam.Melhor suportar-lhes a irritação do que a incompreensão.Continuei imóvel,quieto,mal respirando.
 A penumbra prosseguia.

                                                           4

    Sentia minhas costas doerem,as pálpebras pesarem,o amortecimento das mãos.Um pouco mais,só mais um pouco.
   Os dias estão passando e,em breve,poderei ir.
   Lá no pátio,ia aumentando a aglomeração.
   Minha mãe suspirou.

                                                           5

    Nenhuma chama ainda.
   Era uma questão de tempo.
   E de espera.

                                                            6

   Amanhã.
  No sétimo dia.Ele costuma chegar no sétimo dia.Se Ele quiser,deixara bem claro minha mãe.
  Quase pedi a ela que fizesse a aglomeração se calar.Parecia cada vez mais ameaçadora e incapaz de compreender.Não raro,gritos afloravam.
  Amanhã estará feito.Amanhã,a esta hora,já estará cumprido.
  Chamo por minha mãe.
  Ninguém responde.



 ( foto: Cleber Pacheco) 

domingo, 25 de setembro de 2016

Retorno

  Era preciso trazer o menino de volta.Se não conseguisse,ao menos deveria vê-lo,abraçá-lo um momento e dizer “ Eu vim”.
   Por toda parte pessoas estendidas na terra,algumas enterradas até a cintura,nuas.Gemendo,clamando.
   Olhei aquele horror e resolvi que iria.
   Teria de atravessar por entre elas,suas medonhas deformações,tentando conter a repulsa.Não havia outra maneira.Se quisesse chegar ao meu destino,teria de enfrentá-las.   
 Talvez fosse melhor recorrer ao auxílio do cão Ulisses. Poderia ser o seu guia.
 Chamou-o.Ele logo veio.Buscando coragem ou impulso,iniciou a travessia.
 As pobres criaturas estenderam braços,agitaram mãos,aflitas,atônitas.Pareciam implorar,raivosas.
  Foi evitando-as,tentando ignorá-las.Mal podia suportar tanta corrupção e fedor.Putrefactas,muitas delas tentavam mordê-lo,de algum impedi-lo de continuar.
   Confiando na capacidade do seu guia,ele chegou a baixar as pálpebras,deixando-se levar.Se parasse,perdido estaria.Seguir,seguir em frente.Era o que restava.
  Foi um longo caminho até chegar à criança.Praticamente aprisionada pelas monstruosidades se encontrava.
  Assim que o viram,atacaram de imediato.
 Uma cruel luta,terrível combate teve início.Não havia como evitar.
 Ao abraçar o menino e envolvê-lo em seus braços pôs-se rapidamente em marcha para poder retornar.Tinha certeza de que a volta seria ainda muito mais difícil.
   Arriscava.
  Então caiu a noite e tudo escureceu.          

( imagem: Google)                     




sábado, 24 de setembro de 2016

CURA

Cerzir as descosturas
de dentro e fora
em habilidade de agulhas,
 conjunção de tecidos
em nova túnica,
reparo em dimensões
que se entrecruzam,
intersecções de instantes
em criação de conjuntos,
o diverso em homogêneo
de estruturas,
hálito que incendeia
o ritmo vibratório dos aromas,
fonte e fluxo
a rememorar o verídico,
espírito em obra
na intermitência da sombra.

(foto: Google imagens)

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

ERAS GEOLÓGICAS

   Há muitas maneiras de se ocupar o tempo e de explorá-lo,disse o pesquisador chefe da equipe arqueológica,explicando para a comunidade o resultado parcial dos trabalhos.
   Três anos fazendo escavações demandavam grande esforço e dedicação.Nenhuma medida fora poupada para alcançar êxito.Nada parecia difícil o suficiente para impedir a realização de tão importante empreendimento.Qualquer dedicação parecia pouca diante da grandeza do projeto.
   Na camada mais profunda,continuou ele,encontramos nada mais nada menos do que um antigo cemitério indígena.Ossadas em excelente estado de conservação envoltas em esteiras de palha, juntamente com alguns artefatos feitos por esses povos nos ajudarão a conhecer e compreender melhor a vida e as crenças dos nativos que aqui viveram há muitos anos atrás.
   Na camada seguinte ,encontramos os restos mortais dos antigos coronéis e de suas senhorinhas,pessoas distintas que organizavam e comandavam a então pequena vila.Pela grandeza das antigas tumbas será possível investigar seus usos e costumes.
  Por fim,na camada mais próxima à superfície,encontramos,segundo os exames realizados,apenas cadáveres de bêbados,drogados e prostitutas.De modo que nos deteremos em investigar tão somente as épocas passadas,pois esta última descoberta não nos apresenta nenhum interesse.
   Após os esclarecimentos obtidos durante a palestra,as pessoas do lugar voltaram para suas casas dando sequência aos seus hábitos de mexericos,reuniões no boteco e despachos na encruzilhada quando absolutamente necessários.
   Já os pesquisadores continuaram o seu heróico trabalho. Levaram o resto de suas vidas estudando os antepassados:alimentação,vestuário,ritos,doenças.Recolhiam potes de cerâmica e colares,véus para cobrir a cabeça durante as missas e dentes de ouro.
   Os encarregados de registrar tudo gastaram anos preenchendo formulários e fazendo arquivos minuciosos das descobertas realizadas.Afinal a memória era algo precioso e a história  não deveria ser perdida a fim de que se pudesse compreender melhor os meandros da alma humana.

  Já o pintor pós-modernista,inspirado naquilo tudo,não teve a menor dúvida ao realizar a sua obra:tascou um borrão preto numa tela em branco.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Poema de Álvares de Azevedo (1831-1852)



MINHA DESGRAÇA

Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de deus,o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei...O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

FLORA

A raiz
do intenso
vibra
no vórtice
do irrestrito,
realinhando
istmos
no continente da flora.

Árvore
anêmica de medos,
 a respirar
o fúlgido
em coreografia de folhas.
Insano
que se repara
na instabilidade do estático.

Floresta
inaugurada
na imunidade
dos impulsos,
recolher
de seiva e sombra
entre
incivilidade de insetos.


(foto: Cleber Pacheco)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

AQUI

     Um tão comum caminho não poderia apresentar tamanho inusitado.O fato é que apresentou.Nada se destacava ao redor,nenhuma beleza ou feiura, nenhum aspecto particularmente intrigante. Ele passava pelo local todos os dias,assim como o vizinho mal-humorado,a mulher das compras (sempre a carregar sacolas),o menino estrábico e todos os demais.Em nenhuma das vezes algo de extraordinário aconteceu.Até o momento em que parou.
    A causa de sua parada sequer para ele ficou clara.Todavia,paralisado tornou-se,fitando,à espreita.Então seguiu em frente como se nada houvera,sem lembrança alguma.No dia seguinte,o mesmo se deu.E assim sucessivamente,sempre no mesmo ponto.Chegava,parava,ficava.Pasmo por nada.
   Se alguém o interrogasse,não saberia dar nenhuma resposta e até negaria o acontecimento.Apenas uma lacuna restando,espécie de amnésia,nenhuma condição teria de saber a respeito da irresistível atração.
   Sim,porque atração era.Não a do tipo tantalizante,mas a de um ímã,natural.Passava por ali,quedava-se por um átimo,seguia o caminho.Tratava-se muito mais de um desacontecimento do que de um acontecido.
   Aos poucos os vizinhos começaram a notar,embora ainda sem dar muita importância.Mas quando  as repetições ficaram cada vez mais frequentes e observaram o ar de total alheamento do outro,a inevitável cara de coisa alguma misturada ao nenhum,inquietaram-se,alvoroçados.Não era possível.Algo estava se passando e não podiam atinar em que consistiria.
   Já, ele, nenhuma percepção das reações alheias teve.Mantinha a vida como deveria ser,ou ao menos como todos achavam que era,acreditava.
  Numa das manhãs,sutil diferença alterou a estranha rotina.
  Tendo chegado ao ponto de referência,estacou,mudo.Olhou                                           ao redor, a paisagem,o horizonte.Perdeu a noção das horas.Desabou braços,desfez a postura do corpo,arriado.Reteve a respiração,suspiro.Vasculhou as quatro direções,todo o quadrante.Apurou vaga sensação a dominá-lo.Endureceu a retina,extático.Não havia mais escapatória.
  Soube,de modo irremediável,da gravidade da situação.Soube,com a maior exatidão,qual era o caso. Soube.

  Nunca mais passou por ali.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Um poema de Wang Wei

Onde o riachinho termina minha andança,
sento-me e desfruto
 o momento da neblina levantando-se no ar.
Aqui e ali no bosque
esvoaçam filhotes em penugem.
Conversamos entre risos.
Nunca desejamos a despedida.

(foto: Cleber Pacheco)

domingo, 18 de setembro de 2016

PÂNICO

O terror da pedra
é sua inteireza,
imóvel
que mergulha
e nada
na paralisia
do pleno.
O terror da pedra
é o medo dos mudos
de escavar
o indizível
em cinzelamento de espanto.
O terror da pedra
é o pesadelo do insone
erguendo
arguta pálpebra
do invisível.
O terror da pedra
é o semovente
a desvendar
perdas e danos
do provisório.
O terror da pedra
é o susto
a desdenhar
as carótidas do Tempo.

(foto: Google imagens) 

sábado, 17 de setembro de 2016

ESPELHO

      Dentre todas as pessoas daquela festa, sem dúvida Jonathan era a mais solitária. Talvez fosse pelo nome esquisito.Ou pelo fato de sua mãe não ter um marido.O caso é que ninguém mais olhava como ele.Seus olhos continham uma luz nunca refletida em alheios olhares.
  Transbordando de convidados,inchada parecia a casa,invadida por tantos seres inquietantes:uma tia de chapéu (fato intrigante por si só),crianças rechonchudas (pareciam-se com antigas bonecas),uma prima de olhos verdes (a mais significativa de todas).Entre incomuns vestidos e barrigas salientes,ele caminhava quase sem destino.Apenas quase.Inquietava-o a presença da prima. 
  Passou a persegui-la por toda parte,tentando provocar um encontro,uma conversa.Escorregadia,evitava-o.Insistiu.
 Tinha de conseguir.Sabia não se tratar de teimosia,conquista ou egoísmo.Simplesmente precisava realizar o contato.Algo impulsionava-o na direção dela,uma espécie de chamado,de fatalidade.
 Nada mais o interessou.Passou a ignorar parentes e convidados.Nada  tinha o menor significado ou sentido.Era como se somente ela existisse.
 Não estava apaixonado.
 Poderia dizer tudo o que aquilo não era.Apenas não poderia definir em que consistia.
 Pouco se importava se os outros haviam percebido alguma coisa ou o que pensariam a respeito.Precisava,
  A velha atração entre primos poderia alguém dizer.Riria muito diante de tal afirmativa.
  Quase ao final da comemoração,enfim conseguiu.Traiçoeiro,pegou-a de surpresa.Ela,no susto,olhou-o por um átimo de segundo.Foi o suficiente.Ao contemplar aqueles olhos,imediatamente soube o que deveria fazer.
  Foi até o antigo espelho oval da sala e encarou-o.
  Ali estava.Tão velho quanto o mundo.
  Intimamente sorriu.
  Há muito e muito esperara por tão inaudito momento.
    
                                                             

                                                                       


sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Rosarium Philosophorum

Da pétala
o contorno não reduz
a pétala ao íntimo.
No íntimo
a pétala nada é,é apenas a possibilidade
da flor ou mais,
seu verossímil.
O mínimo da flor
não é sua vontade
de existir,a existência,
mas o impresso
na maquete da retina.

Da rosa
a fonte
é o seu existir,
o ousar acontecer,
a ausência
de enxame,do musgo,
o pulsar
da seiva,o fluxo
desprovido de outro
acontecimento que não
ir além
do eterno
fato de ser
A rosa.

A mística rosa
ao alcance
do olho,do peito,do centro,
do vórtice das coisas
inencontradas,
o místico encontro.
Um modo outro
de simplesmente
Saber.

(foto; Google imagens).



quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Um excelente livro

   Encontrei um exemplar de Freedom At Midnight de Larry Collins e Dominique Lapierre no sebo. No Brasil há uma tradução com o título Esta Noite a Liberdade. A minha edição é de 1977.
    O livro é um detalhada e rica pesquisa a respeito da independência da Índia com seus momentos dramáticos e intensos,repletos de conflitos e situações desafiadoras. A narrativa tem início em Londres em l947 e se encerra em Nova Delhi em 1948. Envolve pessoas fascinantes como Gandhi,figura central do processo de libertação daquele país, Lord Mountbatten e sua esposa Edwina, Jawaharlal Nehru entre outros.
   A leitura é fascinante por vários motivos: os acontecimentos narrados são muito interessantes, o trabalho dos autores é de grande qualidade, as pessoas que viveram aqueles momentos possuem traços marcantes. Tudo colabora para despertar o nosso interesse.
    Para quem não conhece ou para quem já leu a respeito, o texto vale a pena,pois traz muitas informações e mergulha nos acontecimentos. É como se estivéssemos vivendo cada etapa daquele processo histórico. Há investigação,reflexão e momentos emocionantes. Um dos melhores livros que li a respeito do tema abordado.
   A edição referida ainda contém fotos em preto e branco que são significativas e ajudam a ilustrar os fatos.
   Recomendo aos interessados em História e para quem aprecia mergulhar nas questões humanas.
 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A Arte da Luz

 O corpo-espelho,
reverso espantalho,
nutre e atrai
ave e raiz,
suor do telúrico,
aridez do etérico,
médio e morno,
fratura do contorno.

Fosco ou opaco,
se refez o risco,
expõe o espantalho
ao novo e velho
traço que apaga
forma tão cega,
dotando-lhe a vista
do olho do artista.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Carta de Virginia Woolf a Vanessa Bell

   ( Um outro texto do meu livro Cartas Imaginárias).

                                                                                                           Vanessa,

   Aqui é a velha Virginia que escreve,agora ainda mais velha diante de uma interminável crise a exaurir-me as forças.
   Sinto-me incapaz de expressar tudo o que sinto e como tenho convivido com todo este tormento.Poucas leituras tenho feito,sem ânimo para dedicar-me aos livros,que tanto amo,aos autores e seu universo,às críticas e artigos que costumava enviar aos jornais,embora um certo projeto persista.
   Mal consegui concluir Between the Acts e só com muito esforço poderei dedicar-me a revisá-lo,corrigi-lo,reescrever certos trechos e ponderar a respeito de Mrs. Manresa,personagem que até a mim intriga. Apesar de ter sentido um grande prazer em escrever cada página,agora sinto-me esgotada e com dificuldade para prosseguir essa tarefa.Já não sei se sou eu que abandono os livros ou os livros é que me abandonam. O mundo parece tornar-se cada vez mais difuso,engolido pelas sombras e espectros, de modo que sua imagem vai perdendo o contorno,alcançando uma quase total opacidade. Apesar de tudo, certo impulso criativo ainda me impele e,quando consigo,preparo algumas anotações para Anon.
   Ás vezes,em minhas breves caminhadas pelo jardim de Monk's House olho os dois olmos a que denominamos Leonard e Virginia e quase sou aniquilada pelo mistério e beleza de ambos,duas imagens que, em meio ao horror,ainda conseguem manter a própria integridade,embora não posse eu definir em que isso consiste. Intrigada,olho também para os originais Leonard e Virginia e fico a perguntar-me o que teria acontecido a eles.
   Na próxima semana pretendo dar um pequeno passeio ao rio Ouse.Talvez isso tenha o poder de serenar-me e trazer um pouco de paz.
                          
                                                                       Afetuosamente,

                                                                        Virginia Woolf. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

OS OLHOS DA LOUCA

A imagem à sua frente pode ser qualquer coisa,
dizem seus olhos cada vez mais líricos e sórdidos.
O que transmuta a imagem não provém da retina,
do cálculo,nem das intrincadas conexões do cérebro ou das coisas.
O inconstante fluxo tampouco aniquila ou gera fetos e abortos.
Culmina non reverberar das origens,incinera santos e hereges,
mesmeriza anjos e súcubos, revertendo a vida em códigos
e símbolos insuspeitos.,muito além dos velhos alquimistas,
para degustar a Terra,o Universo em osmose perpétua.
Os olhos da louca vibram em inocência,desvendando
o delicado vômito do mundo em agônico êxtase,velado
pelas fímbrias do oculto,no amor do ostracismo,
no debilitado corpo dos filósofos,na ossatura das bestas,
no colostro insano da razão,no sêmen virginal do eterno,
no desmentir perpétuo dos átomos,na poesia nuclear do Cosmos.
Os olhos da louca silenciam e advertem:
só se regenera o que não tem remédio.

Iimagem: detalhe de pintura de Hyeronimus Bosch).

domingo, 11 de setembro de 2016

INFINITO

Meu olho atinge o Infinito
vendo o que ninguém mais vê.
A pálpebra do abismo se desloca,
a retina do silêncio vibra,
a circunferência da pupila se dilata,
nada mais é o que havia sido;
estendendo-se aos domínios do numinoso,
num gesto tão amplo
que desfaz o estranho e a tudo torna
aquém do estrangeiro.
Meu olho surpreende
o mais antigo Mistério,
contempla a Forma
que vai além de todas as formas,
sonha e suspira
por um ainda mais além
e alcança o âmago
das coisas inencontradas.
Então retorna
e mais ainda descreve
ao Sonho
o que ele nunca ousou.

(foto: Google imagens)

sábado, 10 de setembro de 2016

CARTA A SHERLOCK HOLMES

  (Outro texto do meu livro Cartas Imaginárias).

                                                                                                      Caro Holmes,

   Sei que neste exato momento encontra-se terrivelmente ocupado com um dos casos mais intrincados de sua vitoriosa carreira detetivesca. Talvez eu devesse abster-me de enviar esta missiva, deixando tal coisa para o momento em que você estivesse num daqueles seus períodos de relaxamento com o seu violino. Todavia,creio sinceramente ser mais frutífero o resultado da leitura desta minha mensagem justo agora,quando se encontra mergulhado em tão desafiadora tarefa.
   Almejo efetuar uma confissão e faço-a: nunca cheguei a compreender os seus métodos,nem como conseguia descobrir que uma pessoa fumava e qual a marca do charuto.jamais descobri qual o modo do funcionamento da sua prodigiosa mente.Nunca cheguei  a alcançar os píncaros da sua inteligência,reconheço.Reconheço,também,minhas limitações.
   No entanto, sinceramente,creio ter perdido,de fato,as pistas do seu desempenho mental na primeira vez que não o reconheci em um dos seus extraordinários disfarces. Desde então tornou-se inevitável o desencontro.E agora sei que terei de investigar a mim mesmo para poder reencontrá-lo.Se um dia eu conseguir.
                                                       
                                                                                                                                                                                      Watson. 

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

NEVE ( Uma história sobrenatural)

       A travessia da floresta  durava três dias já. Completamente encoberta pela neve, destilava um frio enregelante. Quando meus companheiros e eu partimos,estávamos preocupados e com medo ,exceto Filipe.
     Sabíamos o quanto seria arriscado. Caminhávamos em silêncio. Era estranho observar o quanto Filipe estava eufórico. Quanto maior o frio,mais excitado se tornava. Era como se houvesse sido atingido por intensa febre. Falava sem cessar enquanto nos arrastávamos o mais discretamente possível.
   Na primeira noite, Eduardo ofereceu-se para permanecer como vigia e alimentar o fogo enquanto dormíamos.  Podíamos sentir uma estranha presença à nossa volta.  Foi inquieto meu sono, tive pesadelos. Não conseguia relaxar.
   Ao amanhecer, encontramos Eduardo morto.
   Buscamos por sinais de agressão ou pegadas na neve. Nada. Seu corpo parecia simplesmente mumificado pelo frio.
   Seguimos ainda mais ansiosos enquanto Filipe demonstrava o seu contentamento.
   Na segunda noite, Pedro decidiu que seria ele quem ficaria acordado. Prometeu chamar-nos se percebesse qualquer coisa. Antes de adormecer, pude ouvir o vento sacudindo  os galhos de modo sinistro.
   Pela manhã,Pedro estava morto e havia corvos congelados ao seu redor.
   Na terceiro noite, observei Filipe dormir. Súbito ele despertou tomado pelo frenesi.  Eu o vi mover-se incessantemente. Eu sabia que naquela noite eu seria o próximo a morrer.
   Era preciso fugir.
   Corri através da  neve enquanto era seguido por alguém. Apesar de olhar para trás, nada vi. sentia apenas a presença vindo em minha direção.
   Encontrei uma árvore oca e ocultei-me dentro dela.
   Há três dias estou aqui.  O frio é mortal. Ainda estou tentando descobrir se é o vento ou se é Filipe que está vindo me matar. 

(foto: Google imagens)  
   

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

CARTA A MARY SHELLEY

( Texto do meu livro Cartas Imaginárias. A proposta do livro é a de imaginar cartas que poderiam ter sido escritas por autores,leitores ou personagens ).

                                                                                                   Querida esposa,

   Estava eu com o nosso amigo Byron quando recebi o teu manuscrito intitulado Frankenstein  Foi uma grande surpresa para ambos,uma vez havíamos esquecido por completo nossa anterior proposta de escrevermos a mais horripilante e macabra das histórias. Assim sendo,foste tu a única a cumprir o trato.
   Sentamo-nos sob a luz do lampião e da lua para mergulharmos em tua extraordinária invenção.À medida que avançávamos a leitura, alternando os papéis de leitor e ouvinte,cada vez mais nos convencíamos que o verdadeiro Prometeu só poderia ter sido uma mulher e não um homem.Ninguém mais ousaria roubar o fogo dos deuses e entregá-lo à raça humana.
   Minha adorada Mary, assustado fiquei contigo e horrorizei-me ao descobrir com quem me casara. Porque só então percebi,mesmo tendo escrito tanto a respeito,em que consiste o verdadeiro amor.Por tal revelação,te agradeço.
                                                                                                                                                                          
                                                  Eternamente teu,
                           
                                                                 
                                                  Percy Shelley. 
                                                                           



quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O GATO E O MAR

     Na janela,o gato vê o mar.Ronrona e namora,quer a água como amor.Não sabe o que são ondas,apenas está afoito.Chegar até a praia é o seu grande desejo.
     Salta para a rua,atravessa-a,chega até o cobiçado local.
     O namoro principia.
     Nunca ninguém viu coisa igual.Um gato pela praia não é de todo dia.Passam pessoas,passeiam pelas calçadas,nenhuma só presta atenção em tão inesperado acontecimento:um gato apaixonado pelo mar.
   Água e felino não combinam,creem todos.Jamais viria à cabeça de quem quer que fosse semelhante pensamento:um gato apaixonar-se pelo mar.
     Ninguém vira o rosto para observar o gato a  rondar o inquieto líquido.Mas ali está ele,todo à espreita,à espera de uma distração,de um descuido das ondas.Talvez dê o bote.É que ele sonda as águas.E não compreende.
    Com o inesperado encontrou-se:uma coisa que balança suavemente e o chama para si.
    Vem comigo,dizem as ondas,vem.
     Difícil resistir.
     Resistente,ao invés de ser encantado,quer encantá-las.
    Também sei pular,diz.E salta para frente em exibição.
     Um estranho bailado se faz presente:o do gato que não só não quer render-se ao mar,como também pretende rendê-lo.E o do mar,igual em quase tudo,só mais largo,mais tentador.
     Difícil saber qual o movimento mais poderoso.Um,cheio de manha.O outro,vasto.
Um tentando vencer pela agilidade.O outro,pela grandeza.
     Duelo perigoso,onde os dois atacam,se exibem,tentadores e hábeis.Cada qual mais cheio de encantos.
     Eu consigo,sussurra o mar.
    Consigo eu,insiste o gato.
     Bailado e duelo plenos de beleza e susto.
     Homens e mulheres continuam seu passeio,nada percebem.Parecem tão preocupados.
    Enquanto isso,do inesperado beijo,do bailado e da embate nasce o inesperado:um ronronar-marulhar ou um marulhar-ronronar.
     Somente eles poderiam entender o significado de tal diálogo.
     Irrompendo em claridade,em tudo interferindo,surge,entre bicho e imensidão aquosa,no exato meio,o sol:
    Não sei o que pretendem vocês,interrompe.
     Meio atônitos,ambos olham para cima.É o gato que responde,insolente:
      Não te interessa.
     Estamos testando quem vai vencer,explicou o mar.
     Está na hora de resolverem esta situação,esclareceu o sol.
     Ali embaixo,cada um pensa que teria sido melhor se aquele intrometido não tivesse vindo dar ordens.
     Precisam,agora,encontrar uma rápida saída.
     Recua,em ondas,o mar.
     Para casa vai o gato.
     O sol,meio aborrecido,recolhe-se atrás de uma nuvem.
     Da janela o gato mira o mar e mia.
     Na praia,retorna a água e murmura.
     Mesmo à distância,o namoro prossegue.
     A vidraça através da qual os dois se enxergam,dirige-se a eles,compreensiva:
     Sim,sim,podem ficar à vontade.

( Minha história O Gato e o Mar foi traduzida para o inglês e publicada nos estados Unidos) 


(FOTO: Cleber Pacheco) 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

UNIDADE

Pedras e sóis
recolho
num único gesto
concedendo
ao fulgor e ao opaco
o mesmo toque.
Cada digital
é tão antiga
que reconhecem,
os meus dedos,
o nome de todas as coisas,
ainda que mudas.
Pedras e sóis
recolho
num só ato,
sem desfigurar
radiância e fortuito;
minha mão é hábil
para os afrescos
e a arte rupestre.
Pedras e sóis
recolho
e contemplo
o que ninguém ainda desvendou
mas se coaduna
e vai se amalgamando
num só cântico.

(foto: Google imagens)

VISÃO

Esta laranja,
réstia feito carne
no prisma da árvore,
naco do nada
no despir do silêncio,
é sumo
do inatingível,
licor de tudo
no intestino do aroma,
arrebatamento
de luz
nas trevas do susto,
amor que atinge
o átimo do irrevelado,
cor e fruto
no apalpar
do invisível
a prometer-se
nu
em concêntrico
de enigmas,
corpo de sol
ao alcance
das digitais do Mistério.

(foto: Google imagens)

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

AUTOR CONVIDADO

   O autor convidado de hoje é o poeta Sérgio Villa Matta. Ele tem 35 anos, mora em Londrina-PR e adora escrever poesia.

Boto poemas pra secar no varal

Boto poemas pra secar no varal
enquanto aguardo o sol penso
que pescar pessoas é um risco 
e que todo mundo anda meio no mundo da lua mesmo
então penso no poema secando lá fora no varal
enquanto vc está lendo estas frágeis linhas de um poema
que na verdade ainda não secou por completo
quem sabe vc mande um sopro um sol ou um tornado
e eu te pesque pequeno leitor que me lê nesta tentativa
em teste de um poema que se escreve enquanto
seca suas linhas no varal da escrita e este pequeno poema vai quarando

 como roupa amarrotada no varal enquanto vc leitor vai acompanhando suas linhas
 estendidas ao vento desta escrita que ainda seca ao sol da poesia

domingo, 4 de setembro de 2016

LUZ PRÍSTINA

 No remoto
silêncio
das coisas
às vezes desce
a luz original.
O pássaro pousa
na pedra
e avalia
rotas de voo.
A paisagem
oferece apenas
um grotesco de crateras.
É preciso
mergulhar
no azul
sabendo
que o próximo pouso
será
no abismo
 da rocha.

(foto: Google imagens)

sábado, 3 de setembro de 2016

ROSA SAGUNA,ROSA NIRGUNA

Vejo a rosa sattvica
em exata desmedida
de pétalas e silêncio,
única;
desprovida de improviso,
quase o oposto
duma imagem.
Um modo outro
de fazer-se vista,
inencontrada,
num desconcerto de rizoma,
vívida.
Presente e isenta.
Um modo outro
de expor-se,intocada,
incolor ao tato,
autêntica.
Uma rosa desprovida,
o entorno,
tornando viável
a rosa,o eterno
conceito do ilógico,
razão original do Impossível.
Vejo a rosa,
o seu ato; dispo-me.
Não para ser visto,
mas imitação: enigma.

(foto: Google imagens)

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Rumor

Há movimentos nos céus,
sombras rastejando sobre a terra.
Nem sempre a morte é anunciada.
Um ruflar de asas pode habitas os sonhos.

(foto: Google imagens)