sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Livro


Estou inscrito
em tuas córneas,
impresso
em teu aroma,
encadernado
em tua história,
recitando
as tuas Escrituras.
Estou traduzido
em todas
as línguas arcaicas e modernas.
Lemos
um ao outro
(inclusive em código morse
e snais de fumaça)
como os videntes
leem
as folhas de chá.
Rupestres, cibernéticos,
escrevemo-nos
na Biblioteca do Tempo.

(imagem: Google) 

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Microconto: Teologia


Os Doutores da Lei discutiam entre si. Um grupo defendia que é preciso usar apenas dois dedos para abençoar enquanto o outro afirmava categoricamente que se deveriam usar três dedos.
Enquanto isso, o menino colocou a sua mão sobre a testa do homem doente e o abençoou.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Sombra


Um mundo escavado na sombra
que se dissolve
no concreto das coisas
dissimuladas.

Um aviso
feito de assombro
recorrendo aos espasmos
do esquecimento.

Um soluço ígneo
na intimidade do claro
tatuando o obscuro.

(foto: Cleber Pacheco)

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Súbito


A vida é tão antiga
que perdeu sua validade.
Tão velha quanto,
a morte se aposentou
por invalidez.

O dia é neutro
e veste roupa branca
para quarar ao sol.

A terra incha
seu ventre,
o abismo abre
fundas goelas.

Nunca e sempre
despem-se
 disfarçados em quando. 

(foto: Cleber Pacheco)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Mito de Cassandra


Dito foi. Mais uma vez
e outra.Não adiantou.
Nem profetizar preciso.
Basta ter olhos,como Tirésias.
Mas não veem nem ouvem
os homens. Falar não sabem.
Lascivas são suas línguas.
Dito foi e tanto que confundida
se tornou toda pronúncia.
Babel e monólogo, o homogêneo
inverossímil. Nem os criptógrafos
decifram-me. Mais feliz
foi a esfinge. E o que havia
para ser entendido? Mínimo
deveria ter sido o esforço; eis
a chave.Bastaria.Ninguém
 ousou. Do simples não se extrai
o sumo,dizem.

(imagem: Google)


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A Grande Obra (IV)


Há um desvendar-se
na gratidão
de desconjuntar-se
sem a disjunção,

modo de abrir-se
refazendo o jeito
de enfim cobrir-se
com o não-feito.

Há um desvendar-se
refinado no apuro
ao contaminar-se
com o que há de puro,

modo de lacrar-se
desfazendo o feito
e enfim tonar-se
o avesso do direito.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Coração



Para que a noite amanheça
inaugura e rememora
é certo que o agora
é corpo sem cabeça
sabe que um poço
é um olho e um pescoço
e então repete
setenta vezes sete
à esquerda outro zero
à direita o tom sincero
assim anima e tolhe
o que planta e o que colhe

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Resistência



Eles posam para retratos
armados até os dentes,
sorriem e,aplaudidos,
escancaram a sanha dos brutos
no insano cio das bestas
que fecundam as presas da barbárie.

Não farei retratos,
não portarei armas,
não venderei a alma ao diabo.
Portarei livros
e a sanha da escrita,do verso
na seiva fina da poesia.

Estarei vertido em pedra e nuvem,
destilando o tremor e a treva
até verter todo o orvalho
que só o fardo do sutil carrega.

Estenderei, com firmeza, os braços
sobre a matéria fria do intangível
cravando o espírito da carne
na transubstanciação das entranhas
até fazer nascer a chama do poema. 

(foto: Cleber Pacheco)