terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Resenha



   A literatura do século XX produziu grandes romances distópicos. Huxley, Orwell, Burgess criaram visões muito interessantes a respeito de sociedades opressoras,injustas,desumanas. Agora o século XXI já tem um grande romance nos mesmos moldes. trata-se de O Conto da Aia ( The Handmaid's Tale) de Margaret Atwood.
   Não vi a série televisiva para efetuar comparações. Mas o livro é suficiente. Diz tudo o que precisa dizer. E poucas vezes li algo tão contundente.
   A história ocorre numa sociedade teocrática estabelecida neste século em data indefinida. Leituras da Bíblia são obrigatórias. As pessoas exercem funções específicas, determinadas pelo sistema. Às aias cabe servir como reprodutoras, uma vez que uma série de problemas acabou por causar infertilidade. Sua única função é engravidar, com o consentimento das esposas, que são obrigadas a "ceder" seus maridos com o intuito de cumprir deveres de Estado.
   Longe do próprio marido e da filha, sem liberdade, impedidas de realizar escolhas,  sua vida é sem perspectivas. Num meio assim tão deprimente resta à personagem deter sua atenção nas pequenas coisas, nos detalhes, em ninharias tornadas preciosas como modo de resistência.
   Com ênfase na condição feminina, a autora nos remete às sociedades patriarcais , estabelecendo uma aguda análise das relações entre política e sexualidade. Desumanizadas, resta às mulheres buscarem brechas, ainda que mínimas, onde possam respirar um pouco. Mas é necessário estar sempre vigilante. Há riscos e perigos. Punições pesam constantemente sobre suas cabeças.
    Aos poucos a protagonista descobre as transgressões e a hipocrisia do "novo" sistema, deixando ainda mais explícita a crueldade ao seu redor. 
    Entre invejadas e desprezadas, as aias não possuem nenhuma escolha. Caso não ocorra uma gravidez, podem ser  afastadas de todos e declaradas Não-mulheres.
   Margaret Atwood faz uma análise fina, profunda, sutil e detalhada a respeito do passado, do presente e dos riscos futuros, pois os fundamentalismos estão aflorados em nossa época, assim como os extremismos, as discriminações e preconceitos. Trata-se, portanto, de uma obra muito pertinente, capaz de analisar os riscos e as ideologias dominadoras existentes em qualquer tempo e lugar.
   Quem gosta de ler e está atento ao mundo de hoje não pode perder a oportunidade de conhecer este livro.
 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Frestas


Conheço gente que não sabe nem fritar um ovo.
Conheço gente que não entende a mais simples metáfora.
Conheço gente que não consegue colocar água sem trincar o copo.
Conheço gente que sempre morre antes de despertar.

Não indico nenhum manual de instrução.
Reverencio  o que cada um não sabe.
É ali que cada um duvida do seu próprio nome.

( foto: Google imagens)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Poema em dupla


(Poema escrito em parceria com a poeta indiana Sarala Ram Kamal).

SIGNS

On the water
flowers and shadows
draw
the mysteries of the liquid
in singular art,
forms expelled
in the curvature of the instant
where wonder arises.

(foto: Cleber Pacheco) 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Frágil


Desfazer-se
em leveza,
desmentir
a consistência,
esperar a espera
sem reter,
fluir, volátil.
até o limiar,
destecer
a trama secreta
 urdida
no coração dos mortos.

(foto: Cleber Pacheco)

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Resenha


   Em 1882 Ibsen, dramaturgo norueguês,  publicou Um Inimigo do Povo. A peça só foi encenada no ano seguinte, obtendo grande repercussão. Após escrever teatro de caráter histórico sem sucesso, o autor deu uma guinada em sua trajetória, passando a fazer um teatro realista. A partir daí, sua carreira dramatúrgica ganhou realmente a importância que tem até hoje.
   A peça em questão aborda os acontecimentos ocorridos com o dr. Thomas Stockmann e sua família quando ele revela o problema da contaminação da água na estação balneária de sua cidade.  Inicialmente recebendo apoio da imprensa ( cujos interesses são, na verdade, políticos, sem nenhuma preocupação com a saúde das pessoas ), rapidamente a situação vai se modificando. Quando os interesses da classe dominante são desafiados, todas as informações são manipuladas de modo a opinião pública voltar-se contra Stockmann. E é exatamente o que acontece. Suas boas intenções e sua atitude ética são proclamadas como insanidade, jogo de interesses, etc. Seu objetivo de evitar que a população adoeça é distorcido e essa mesma população passa a tratá-lo com hostilidade. A campanha contra ele inicia com seu próprio irmão, prefeito da cidade. E vai se estendendo até chegar à classe operária.
   O texto de Ibsen é bem claro: a unanimidade é estúpida. A visão da maioria não é a melhor, pois a multidão avilta a iniciativa individual, anula o pensamento próprio, é mesquinha e cruel, não dando lugar ao diferente, não permitindo discordâncias, agindo por medo da opinião pública, além de facilmente manipulável:
   Não! A maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já se disse! Todo cidadão livre  deve protestar contra ela (...) em se considerando o globo terrestre como um todo, os imbecis formam uma maioria esmagadora." 
   Ora, em tempos de total manipulação midiática, de fake news, manipulação de eleições ,  e de grandes corporações engolindo cérebros, como é o nosso, nada mais atual do que esta peça. Lida ou vista nos palcos, o importante é conhecer o texto e refletir.
 
   
 
 
 
 
 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Lago


Sussurros da outra
margem,
placidez
na sofreguidão do espelho,
miragem
de raízes do aquoso,
voragem
de límpido e lodo,
imagem
do etéreo
na carne da superfície,
estiagem
do tangível
no íntimo do exposto.

(foto; Cleber Pacheco)




terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Descontinuidade


Efetuei estranhas costuras
cosendo o desigual;
atando árvore e estrela,
engendrei novos bordados
em levíssima tessitura,
desencontrei botão e casa
tecendo outra túnica,
desinventei a roda
para fiar uma roca,
destituí as lagartas
para descobrir o fio.
vestido e nu pisei
por onde não há trilha,
caminhos são suaves
quando mais que desencontram.

(foto: livro antigo de corte e costura- Google imagens)