domingo, 13 de outubro de 2024

Histórias

 



Contam longas histórias os mortos,
todas sem fim nem começo.
não escolhem palavras,
usam todas as existentes
e ainda assim são capazes
dos mais criativos neologismos,
sempre precisos em sua irreversibilidade,
nos definem sem necessidade de cálculo.
Às vezes é preciso aparar
unhas e cabelos
e vestir um terno antes de ouvi-los.
Exigem nossa atenção e preparo
e não dispensam a embriaguez
da sobriedade para que
nos tornemos capazes
de distingui-los entre os sagazes
sussurros do inverno.
São inúmeras suas histórias,
recém- nascidas ainda que em reprise
de coisas ainda por acontecer.
É preciso aniquilar os olhos
para entendê-los
com a atrocidade auditiva do amor.
Nunca se sabe
o que suas histórias farão conosco.
De qualquer modo,
por estarmos indelevelmente vivos,
assombrarão nossos sonhos
ainda que estejamos despertos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Valsa

 



Há modos tantos
de inventar o vento:
flagrar a folha
em insana coreografia;
fecundar o embrião
da nuvem dissipada;
sorver o sopro,
expirar palavra,
imprimir o gesto
no corpo-ideograma.
Há muitos modos
de se ver o vento:
nenhum deles
dispensa o drama.
Há um modo outro
de convocar o vento:
revirar o olho
em seu avesso:
adormecê-lo cego ,
inspirar começo,
desmembrar de membrana
que voo alça,
e enfim curvar-se
à sua valsa.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Oráculo

 



Sempre é tarde demais,

já foi dito.

Sempre é cedo demais,

sussurrou alguém.

Sempre é apenas 

um modo do Nunca,

foi insistentemente explicado.

Nunca é um modo

de acontecer desacontecendo.

Talvez só o talvez

tenha a exatidão necessária,

anuncia o Oráculo de Delfos. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Resenha

 


RESENHA DO ESCRITOR FRANKLIN JORGE A RESPEITO DO MEU LIVRO ESCRITORAS INGLESAS: 

Escritoras Inglesas, de subtítulo De Mary Shelley a Ruth.Rendell [Editora Caravana, Ouro Prefo. 2024] nos proporciona uma leitura agradável e instrutiva, ao desvelar-nos de forma fluente o universo criativo de uma Plêiade de mulheres inteligentes e imaginativas que nos têm despertado a atenção e o interesse há gerações de leitores e e inquietos.
Seu autor, o polígrafo gaúcho Cleber Pacheco realiza uma obra que nos surpreende, delicia e nos faz pensar sobre um gênero que no curso do tempo tem-se enriquecido com novas aquisições e se mantido vivo e instigante.
Leitor acurado da obra alheia e, como tal atento às novidades, Cleber Pacheco amplia com a sua colaboração à Literatura Brasileira ao afirmar com esta obra breve e significativa a Cultura do nosso tempo

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Os Rishis de Aryavarta

 


Para quem tem olhos de ver
e ouvidos de ouvir
não há o Oculto.
Distantes dos cegos guiando
cegos, desvendam,
os rishis, os Arcanos do Cosmos,
leitura infindável
de um texto sem alfabetos.
capaz de eclipsar
a linguagem cifrada
da mais astuta Sibila ,
passagem pelo mais vibrante vivo
e o noturno mundo dos mortos.
Não há, para os rishis,
fronteiras a não ser o Insondável
onde reina, absoluto, o Indizível
e é desnecessária a memória,
Cosmos que continuamente se revela
sempre mais além de todo alcance
onde o Infindável se resolve
em infinito transcender-se
e até mesmo uma Rosa suspira ,
mesmerizada pela insana
lógica da Beleza.
( Rishis eram sábios da antiga Índia, videntes do Conhecimento .)

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Zen

 



Engana-se quem jura,
num jardim de areia,
não haver borboletas.
Encontram elas, nos grãos do tórrido,
as cismas do sóbrio
onde floresce o impossível.
Desafiam, com asas ingênuas,
os estertores do árido,
dele sorvendo a seiva
do que não teve batismo,
sequer terá um nome.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Via

 


Caminho pelas mesmas paisagens,
que são sempre outras:
uma réstia, uma sombra
me avisam
que mundos aqui
se transfiguram
entre os sussurros do frio
e as fronteiras do inverno
e a vida é logo refeita
antes ainda do adeus.
Hoje percorro a antiga via
onde muitos trincaram
seus pés ; se retiro
mansamente os sapatos
é porque aqui já estive
outrora.
(foto: Cleber Pacheco).


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Autor Convidado

 


Milton Rezende, poeta e escritor, mineiro de Ervália (MG). Morou em Juiz de Fora (MG), Varginha (MG), Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Possui quinze livros publicados e tem um Site e um Blog:

www.miltoncarlosrezende.com.br

estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).


A VERDADE SOBRE A MENTIRA

 

 

Tenho dito mentiras

sem tomar consciência

de sua contextura falsa.

 

Não tenho desmentido o que digo

pois tenho a concepção de que minto

sobretudo para mim mesmo.

 

Sendo assim as minhas mentiras

não podem acarretar

na perda de qualquer afeição.

 

E já que é precisamente sobre a falsidade

que se alicerça o convívio entre os homens,

as palavras de mentira ou verdade que eu disser

nada significam de permanente num relacionamento.

 

Mas não posso deixar de convir

que assim fazendo, a cada dia

eu amanheço mais distante de mim.

 

Milton Rezende “in” O Acaso das Manhãs




 

 ANDARILHO DEITADO

 

cheguei cansado para deitar

sobre a cama de papelão no chão

e debaixo da marquise gotejante.

 

uma poça de água da pingadeira

sobre o passeio do mercado desativado

onde dormiam indigentes à espera do fim.

 

dormir é dócil como o bebê embriagado

desapercebido dos planos de Deus.

 

Milton Rezende “in” Um Andarilho Dentro de Casa


ENQUANTO A CHUVA NÃO PASSA

 

Os dias acalmaram o sonho,

como se para isso não bastasse

a ausência de teus olhos.

Mas na noite um verso simples

brotava do silêncio para dar

uma esperança menos triste

ao cotidiano.

Ao longe eu visualizava uma imagem

pensativa que acreditava estar

preenchendo o hálito da noite

e a chuva no telhado com teu

sorriso mágico. Mas a distância

não me permitia tais conclusões.

Seria necessária a palavra e a

tua presença para restabelecer a paz

e aquela sensação confiante que

tínhamos quando crianças.

Coordenar as coisas e arrumar

a casa num ambiente tranquilo

para receber a realidade,

dissipar os sonhos

e adormecer em teu gesto.

 

Milton Rezende “in” A Sentinela em Fuga e Outras Ausências

 

 

 

 

 

 

 


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Resenha


 

   Texto do escritor Dilan Camargo a respeito do livro: 

Li o teu livro com grande interesse e muito gosto. Uma escrita límpida e fluente que me puxou para dentro das páginas. Possui uma admirável clareza e coerência literária. Texto bem estruturado, sem brechas.
Escolheste um ótimo título para mostrar as existências excluídas das personagens que também foram “sepultadas” numa torre do silêncio de suas vidas solitárias, atingidas pela fragilidade da condição humana. Humanas, mesmo assim.
Cinco personagens, em espaços geográficos separados, nos limites de ambientes caseiros diferentes, com ocupações e interesses variados, vivem fustigadas pelos acontecimentos que cercam a vida de cada uma. E, afinal, de todos os humanos no âmbito de suas escolhas e circunstâncias.
Seus destinos são incompletos e infelizes? Ou simplesmente são destinos? Poderiam ter vidas heroicas, fascinantes, aventureiras, ou ditas normais? Há tantas hipóteses de vida! Nem todas se realizam.

A novela é uma metáfora da vida, tantas vezes tentada a ser escrita por escritores e poetas, mas nem sempre realizada. Cleber Pacheco conseguiu. Revelou as solidões individuais que se dissolvem na imensa solidão deste “vasto mundo.” Nosso mistério existencial só pode ser iluminado por uma metáfora. Daí precisarmos de transcendência na prosa e na poesia.   

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Cesário Verde ( 1855-1886) Lisboa-Portugal

 



HEROÍSMOS 


Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo0 disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e nágua quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Voo

 



Eu sou o que você
nunca compreenderá
com seus olhos pardos
de hiena faminta
com sede de sangue.
Conheço bem a savana,
nela até os elefantes morrem
na fome de marfim
que os persegue e dizima
em atos de sobressalto,
antro de repasto e carcaças
onde o viver
se consome e consuma.
Eu sou o voo
que tudo vê,
que é apto e capta
onde a serpente sibila
e depois dissolve as nuvens,
aves voláteis,
suas irmãs de leveza.
Conheço bem os quadrúpedes:
nunca reconhecem os bípedes,
falta-lhes a inteireza que preza
o mundo que não é presa;
o leve sussurro da asa ,
mais que o estrondo, ensurdece
olhos que são só certeza.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Ninho

 


Tudo é vento e transtorno
nos quadrantes semeados
entre corvos e espantalhos
em sul e norte do impreciso.
Só o não-tempo
sobrevive para aliciar
cacofonia de agonias geminadas
no desvario do torvelinho
onde o exato se improvisa
quando no intacto brota
o estático que transita
entre penas e raízes
e a estranheza, grávida ave,
sobrepõe indelével ovo.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Ensinamentos

 



É preciso vencer o mundo,
ensinam os yogis.
É preciso compreender o mundo,
advertem os filósofos.
É preciso viver o mundo,
gritam os boêmios.
É preciso encontrar o poema ,
avisam os poetas,
bem ali, onde o mundo
nos crava a faca.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Estrela

 

Hoje o sol disse
gato, árvore, pedra,
tudo límpido e aceso
no silêncio
e ninguém via
- nem o carteiro a trazer
novidades
nem a mulher que costura
mortalhas -
o dia a exibir-se
ainda não acontecido ,
todo líquido e translúcido
e atento
e ninguém ouvia
- nem o mercador apregoando
preços
nem o afogado clamando
por socorro -
o dia a arder
todo perene
ainda a inventar
o que já existia.
Gato, árvore, pedra?
Nítidos raios
duma mesma estrela.
Pode ser uma imagem de eclipse






sábado, 20 de julho de 2024

Biblioteca

 


(Para Maria Elisabete in memoriam).
Rever, sozinho,
o que juntos já vimos
não é rever:
é desnudar-se
em pleno inverno
enquanto o ar açoita
os alvéolos da melancolia;
nela até a luz sangra
e coagula a angústia
do que não pode ser
transpirado.
Viver não é só um corpo
à deriva
testemunhando a lenta
polinização da memória,
é, também, o mumificar
do mudo
que, ao latejar, se calcifica
onde a ausência
nos alcança.
Chegará,
também, meu dia
de calar-me
e aí só restarão
meus livros não escritos
depositados
infalivelmente
na Biblioteca do Nada.
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