Helena Britto Pereira é formada em Comunicação Social pela
PUC-RJ.Publicou contos na revista literária Germina e o livro A Menina que Não Sabia Escutar e Outras Histórias
pela editora Kronus-2014.
Conto: A Mãe
Costumava ficar confusa quando pensava em minha mãe. O que era uma mãe?
Nem sabia, também, se ela era feia ou bonita. Baixinha, cabelo castanho encaracolado.
Depois, cabelo louro claro, mais curto e liso. Será que era a mesma mãe? Estava sempre
ocupada, fora de casa. Trabalhando ou jogando cartas com as amigas. Ela adorava jogar
cartas. Tinha tantos baralhos na cômoda do quarto! Ninguém podia pegar em nenhum.
Criança não joga cartas, amassa, e não embaralha, espalha. Eu só ficava olhando, com
olho grande, aqueles desenhos de flores coloridas no plástico. No quarto da mamãe
tinha muita coisa. Armários, mesinhas, cadeira, roupa, chapéus. Às vezes, via também
várias camisas do papai jogadas no chão. É que ele vestia e tirava rápido, jogava longe e
dizia que estava sem botão, de novo, droga, e mamãe sabia que papai só gostava de
camisas com muitos botões.
O que eu não gostava no quarto era uma janela que ficava mais pra cima da
cama. Detestava. Em algumas noites ouvia minha mãe dizendo que ia sentar no
parapeito (a babá explicou que era a beirada de madeira) e que ia pular. Eu, no meu
quarto tentando dormir, não gostava de ouvir isso, não. Nem os gritos e barulhos.
Tampava os ouvidos com o travesseiro. Melhorava só um pouco. Eu ficava pensando: e
se ela pulasse e quebrasse um bocado de ossos? Ou as pernas gorduchas que eu achava
lindas? Meu pai dizia que eram lindas. Também dizia Babs (o apelido que ele deu pra
mamãe) sai daí. Dizia gritando.
Eles gritavam bastante todas as noites na hora de dormir. Quando não gritavam é
porque saíam, eles gostavam muito de sair. Então não tinha brigas, mas também não
tinha pais. Nem paz. A babá e a outra empregada se vestiam com roupas arrastando no
chão, e chapéus de palha, e assustavam a gente. E não era carnaval. Eu fazia xixi na
cama todas as noites, tinha muito medo do escuro.
Quando não estava fora de casa, ou brigando, não lembro muito da minha mãe.
Sei que ela gostava de fazer macarronada. A cozinheira ficava só olhando e ajudando,
quem fazia era minha mãe. Era o dia da semana em que eu mais gostava do jantar.
Ela não me levava no colégio. Nem a meus irmãos. Éramos todos semi-internos,
quer dizer, íamos para a escola às 7h da manhã e voltávamos às 5h da tarde. Ônibus nos
buscavam e traziam de volta. Cada um estudava num colégio diferente, e tinha um
ônibus diferente. Na rua, na porta de casa, ficavam em fila nos esperando. A babá corria
de um lado pro outro, nos apressando, sempre atrasados. Não sei como uma babá podia
tomar conta de tanto irmão. Mamãe não conseguia. Ou nem queria. Deve ser porque era
uma babá grande, alta. Papai também era muito alto e forte, e trabalhava muito também,
muitos hospitais, de dia e de noite. E conseguia tomar conta de todos os filhos. Mamãe,
coitada, era uma mãe baixa. Que não ria muito.
Quando íamos à praia, ele ficava em pé na beira da areia nos olhando mergulhar
e nadar e furar ondas. E gritava e batia palmas e dizia mais longe, mergulha mais!
Mamãe ficava na barraca, na esteira (não gostava de areia) de chapéu e olhos fechados.
Quando chamávamos para ela nos ver no mar, ou pegando tatuí, ou fazendo buracos e
castelos, ela não respondia. Minha mãe não escutava muito bem. Também enxergava
mal. Usava uns óculos bem grossos
Meu irmão mais novo nasceu, e era mínimo. Só chamava ele de pingo. Era
muito magrinho e tinha cabeça de ovo e virava os olhos para trás e eu corria para
chamar mamãe. Ele ficava sozinho no berço e então eu ficava perto, só olhando. Eu já
tinha quatro anos. Um dia meu irmão de nove anos entrou no quarto com uma lata de
talco bem grande e disse que ia matar o bebê. Sufocar. Abriu a boca dele, encheu de
talco, despejou o resto da lata no corpo e foi embora. Eu fiquei com muita pena, me
debrucei no berço, abri a boca do meu irmão e limpei. Peguei ele no colo e fui procurar mamãe. Ela ficou assustada quando contei tudo, e foi dar banho nele. Mãe pequena fica
assustada a toa. Depois eu a vi falando pra babá que ficou a-pa-vo-ra-da quando viu um
tiquinho de gente com um bebê branco no colo. Bobagem.
Chato era quando minha mãe não ia às reuniões do meu colégio. Todas as mães
iam, e passavam na sala para dar beijos nas filhas. Ficava com muita vontade de fazer
xixi e então pedia pra freira para ir ao banheiro e ela, que detestava esses pedidos,
deixava. Outra coisa muito chata nessa escola era ter que ir a missa todos os dias.
Confessar todos os pecados e rezar muito. Precisava levar o Missal, um livro com capa
de couro, escrito em dourado, e cheio de folhas muito fininhas. Muitas folhas, um livro
grosso. A primeira folha era em branco, escrito no meio Novo Testamento, e no branco
de cima todas as mães escreveram palavras para as filhas. Muitas palavras bonitas.
Dedicatórias é o nome. Não sei por que, minha mãe esqueceu, então as colegas ficavam
rindo e implicando. Um dia me enchi, peguei uma caneta de tinta do meu pai, e escrevi
"Para minha filha querida, com o amor da mamãe." Assinei assim mesmo, mamãe. Um
dia a freira pegou meu missal, às vezes ela pegava os da gente, viu as palavras e me
olhou esquisito. Será que ela não achou bonito?
Também nos passeios com papai - ele adorava passear - minha mãe ficava
paradona. Cansava. Não gostava de areia, nem de terra. Gostava de drinks. Tinha cheiro
de drinks e perfume francês forte (ela gostava de virar o vidro, não usava a ponta do
dedo, não). Meu pai tinha cheiro de pinheiro. Alto e cheiroso. Nós íamos para Itatiaia
nas férias e lá tinha muitos pinheiros, então decorei o cheiro
Vou ter um irmãozinho! A barriga da mamãe tá bem grande. Vai ser o último,
ela disse pra babá. Dá muito trabalho, cansa. Agora minha mãe não vai poder sentar na
beirada da janela. E se ela escorregar? O bebê pode ficar assustado. Também não vai
poder gritar e brigar muito com papai e fazer tanto barulho. Como o bebê vai descansar?E a outra, uma que ela pergunta sempre para o papai, a vagabunda, também não vai
poder tirar o papai da gente. A outra não tem barriga, a mamãe tem. E vai acabar essa
história do papai sair na noite escura batendo a porta e mamãe correndo atrás dele,
atravessando a rua no meio dos carros. Eu vejo da minha janela. Papai sempre diz pra
gente atravessar devagar. Porque é perigoso, ele explica. Meu novo irmãozinho vai
poder, na páscoa, procurar os ovos de chocolate que meu pai esconde nos lugares mais
difíceis.
Pai grande, quando esconde ovo, é fogo. A gente tem que ir à sala e pegar uma
cadeira grande também. Ou deixar os irmãos pegarem tudo primeiro.