quinta-feira, 6 de março de 2025

Poema em prosa

 



VERÃO 


Insanas de calor, cigarras zumbem na tarde tórrida. Sobre flores pousando, borboletas sugam o núcleo da Terra. A vida vegeta na súbita eolização do nada. A tarde se dissolve no céu que não ousa esmaecer suas cores. É vitríolo o tempo que de se esgotar não cansa. Agora já podemos cerrar os olhos e incinerar a seiva do instante. A vida não cessa mesmo quando bizarra ou circunspecta.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Comentário

 




A escritora Cecília Kemel escreveu este belo texto a respeito do meu livro A Conversão da Pedra :
Virgínia: e quem lhe tem medo?
Mais uma vez, Cleber Pacheco escreve, para o mergulho abissal da alma de seus leitores, um romance áspero, sólido e multifacetado, talvez uma de suas produções mais complexas.
“A conversão da pedra” vem protagonizado pelo menino Walter, embora o foco narrativo esteja muito assentado no elemento feminino vivido pela prima Virgínia e sua sensibilidade exposta ao fundo de um forte instinto maternal. De modo que Walter se torna quase um coadjuvante nessa rede tecida com engenhoso labor.
À medida que a narrativa avança, o ritmo se acelera e o enredo se adensa, desafiando o leitor a perseguir a história nos detalhes. O desprezo do autor pelas estruturas tradicionais é, sempre e cada vez mais, um mérito à parte que faz com que o texto se abra a multiplicações interpretativas. Isso permite uma longa viagem que pode caminhar desde o embate entre os anseios masculinos e femininos até os desdobramentos mais íntimos e viscerais de cada ser, suas crenças, suas verdades, sua fé: a pedra humanizada.
Tudo isso, é evidente, e por se tratar de Cleber Pacheco, desenhado com lápis de mestre, em magistral conhecimento linguístico e refinada ourivesaria poética.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Autor Convidado

 



 Alessandra Del’Agnese é escritora, gastróloga, poetisa, declamadora e cronista gaúcha, com uma trajetória na literatura, percorrendo o Brasil e Portugal. Sua arte é a fusão entre palavras e sabores, onde a escrita e a gastronomia se entrelaçam em uma verdadeira alquimia sensorial. Inspirada pela vida e pela espiritualidade, transforma emoções em poesia e experiências em arte, encantando com sua sensibilidade e criatividade.

A Travessia

 

Caminhava entre sombras e luzes,

Onde a terra se desfaz em ecos de ontem,

E o amanhã se ergue como um véu dourado.

 

Vi almas que choravam seu próprio silêncio,

Presas no tempo que não volta,

Esquecidas do toque, da voz, do olhar.

 

Mas adiante, onde os olhos ardem de aurora,

Encontrei um caminho esculpido em fogo,

Onde o medo é apenas cinza ao vento.

 

Ali, entre murmúrios de estrelas e versos não ditos,

Descobri que o amor não se perde—

Ele espera, paciente, na eternidade.

 

E ao seguir, senti tua presença no ar,

Como um segredo sussurrado pela criação,

Um chamado suave que me guiava adiante.

 

Era teu nome que a luz desenhava no horizonte,

E nele, a promessa do infinito.

 


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Amanheceres

 


Pode, a manhã,
descamar
os fractais do dia,
expelir ,
com presteza,
luminosidades da tarde,
reverter
clamores ocultos
na treva.
Pode, a manhã,
ser indício
duma outra
manhã,
mas com mais
clareza, menos
virtudes ou
mais ousadia.
Pode, a manhã,
descascar
segredos do tempo
e fazer soar
as cordas do olvido.
Pode, a manhã,
vislumbrar
o eterno,
tornar-se resquício
doutro infinito.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Danação


 


Não mais recolher

folhas e penas 

caídas, 

frutos esmagados

na polpa da terra,

não mais ingerir

o sangue das flores

que se mimetizam

em véu e crisálidas

na seiva do extático,

não mais a agonia

da flora que, imóvel,

se gesta 

em inanição 

pressuposta,

não mais o agreste

que se desdiz 

no rumor catártico

da floresta,

o pássaro 

que se despluma 

e belisca 

o orvalho 

para, partenogênese

súbita,

encontrar

a si mesmo 

em engenhosa selva ,

pássaro que se desmente

 e se  inventa, 

em estertor e apocalipse,

na celestial 

 danação da primavera.  


(Foto: Cleber Pacheco). 



quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Cordeiro Místico

 



Silêncio do ventre imaculado,
doce cordeiro
onde o cosmos canta
e o vazio vibra
em coloratura e breu,
água viva
de onde jorra
o fecundo que em nós tece
frutos de fome e saciedade,
cordeiro alvo
de estigma que brota
em dor serena
que reverbera muda
e sem flor
em androceu e gineceu,
cordeiro santo
esculpido em bruma
no tabernáculo do Logos,
vítima e glória do Inefável
em resplendor que enlouqueceu,
cordeiro ígneo
onde o oceano cessa
e principia e traz
à tona a pérola furtiva
do céu,
cordeiro místico,
onde a vida resgata
a vida na morte
em que o infindo
se desvaneceu.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Cisnes

 



Rogamos
para que intercedam,
por nós , os santos,
que transborde
sua Divina Graça
em nossa travessia na equanimidade
do deserto.
Rogamos
por cabeças, pés e mãos
que não nos desmintam
e que saiamos invictos
de nossa singular miséria.
Alguns não têm
olhos, outros não têm
dentes, a outros
a vida avisa
que no pranto reside
a Graça e que só
os descarnados
até os ossos sobrevivem
à corrosão da areia
incidindo impiedosamente
sobre nossa medula óssea.
Por fim restam
os cisnes que a tudo
ignoram deslizando
suas arestas na perfeita
contrição do lago.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Véu


 

Nada direi 

a respeito das coisas

não ditas,nada

acrescentarei ao seu exame

perpétuo, não vacilarei

diante das inscrições nunca

decifradas, só poderei legar

ao enxame de sussurros 

o anel da esterilidade,

nada direi

a respeito da bruma

e as rotas de colisão 

nela engendradas,

mas ficarei pleno

e atento à cremação 

do insensato na acidez

da finitude, ao dia

que requer parto

nas horas extremadas, 

especulação de pólen 

no sombrio das mariposas,

viver que se vela, 

palavra em invólucro,

chama quebrada.  


 


 


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Intervalo

 


Sobre
o piano dorme
a velha gata ,
antecipando já
os primeiros acordes
da quinta sinfonia de Beethoven.
Não há ratos para brincar,
nem piruetas para exibir,
só o aroma
do anonimato das coisas
que se recusam
a dizer onde estão.
Pode, agora, a gata
vasculhar
todas as imagens sem pronúncia
que se anunciam
no intervalo mudo
das estações.
Ferina e livre,
pode, enfim, revelar
a voz de soprano
do vazio.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Silêncio


 

E  porque hoje escreverei 

solicito o vosso silêncio,

a vossa palavra 

que nada direis,

que não fareis

nenhum gesto,

que permanecereis 

alheios  à vossa vontade. 


E porque hoje direi 

sim e não,

o silêncio se curvará 

desdobrado em sustento 

que nada afirma, só inscreve 

a tábua sem mandamentos. 


E porque hoje escreverei,

saldarei a minha dívida

a contento e esboçarei

o que não tem forma 

para desenhar o adeus. 


E porque hoje é hoje

nada direi que não seja 

pranto e alento 

inscrito nas folhas túrgidas 

da matéria do esquecimento.  

 



terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Novo livro : A Conversão da Pedra

 


Texto do escritor Franklin Jorge: 

Em meio a um tempo de superficialidade literária, em que a verdadeira arte parece perdida, Cleber Pacheco surge como uma voz autêntica e rara. Dono de um talento múltiplo, ele mantém viva a tradição de grandes escritores, oferecendo uma obra original e inquietante que lembra ao leitor a força e a profundidade que a literatura pode ter. Sua escrita, marcada por uma personalidade forte e singular, destaca-se em meio à maré de textos vazios e traz de volta a essência dos grandes criadores literários.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Atlântida

 



Há tanto tempo
o mar não vejo,
que me pergunto:
virou sertão?
ainda há onda
em seu ventre estremunhado ?
ainda reverbera
na insanidade do sol?
Não há respostas
uma vez que
até ele indo,
não reconhecerei
frêmito e afronta,
o mar, em mim,
ainda espraia
seu furor na costa
da antiga Atlântida
e não reconhece
a indiscrição do banal
e dos passeios dos turistas
por areias sintéticas,
o mar, em mim,
mesmo em movimento
repousa
ali onde os deuses
nunca alcançam.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Universos Paralelos

 


Clic clic clac clac chloc chloc faziam suas unhas ao baterem umas contra as outras ou ao se arrastarem pelo chão. Eram tão compridas que juntaram terra e ali germinaram minhocas e sementes possibilitando flores e trigo em abundância e o surgimento de abelhas, povoados e aldeias de modo que os habitantes, bem alimentados, puderam filosofar, passando a discutir se haveria outros mundos ou se haveria um ser supremo capaz de gerar e nutrir o universo exato no instante em que , após tanto carregar tamanho peso em seus pés e mãos, procurava alguém que lhe cortasse as unhas.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O LIVRO DA HISTÓRIA NATURAL

 




A história dos reinos também é registrada: pedras, plantas e bichos entrecruzam-se, trocam impressões, interagem. Nunca se ignoram, formam um Todo, um só organismo a respirar nos meandros da Terra. Contam a si mesmo e, para fazê-lo, contam uns aos outros , numa intersecção de narrativas em teia e especulações miméticas , em devoração mútua, de modo que uma folha é um Livro e uma árvore, uma Biblioteca.
O mel é a escrita da abelha com o pólen das palavras. Todos se reescrevem, elaborando a Gramática do Existir.
(Livro publicado em 2019).

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Estrela

 


Não nasci 

para a leveza,

meus pés tocam

o abissal,

minhas mãos,

mesmo queimadas,

 alcançam o Sol.


Posso agora doar

estrelas  aos abismos

da insensatez.

Viver é nevralgia 

nas carnes imponderáveis

do sonho.



segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Filho Pródigo

 



Para existir, uma carta precisa

de três princípios:


primeiro,  um destinatário 

a quem seja endereçada 

 e que a decifre

com ânsia de esfinge;


segundo, um remetente,

que a fabrique entre

as tramas incertas do invisível;


terceiro, o conteúdo propriamente dito:

 tanto generalidades a respeito do clima

e do estado das estradas

quanto novidades altamente 

inesperadas e dramáticas. 


Caso nenhum desses três princípios

seja mais possível e nenhuma

carta volte a ser gerada 

neste mundo omisso e insano,

que ao menos persista 

o espanto de um dia

terem existido, criando 

o Tempo, esse filho pródigo do Espaço. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Arquitetura

 



"O pássaro está morto" foi a sentença.
"A árvore onde pousava
o pássaro definhou", avisou alguém.
"Não há mais primavera", foi a palavra dada.
Com uma pedra de uma cratera
da lua edifiquei
minha catedral.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Precaução

 


Ontem ela quebrou 

o açucareiro e as formigas

vieram me despertar

pela manhã exigindo

uma explicação.


Hoje ela quebrou

o vaso de flores

contendo a única rosa

que havia no jardim.


"Está tudo bem", eu disse,

trincando

meus olhos

antes que seja tarde demais. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Tumba

 



Hoje retornei à tua tumba.
Minhas pernas estavam destroçadas,
minhas mãos haviam trincado,
tanto e tão pouco tempo corroendo
o que poderia ter sido primavera.
Flores secas ao vento sussurram
os pergaminhas da ausência
e tudo se apaga e desidrata
ainda antes que se desintegre o dia.
Chega murcha a noite e nada
acrescenta ao triste canto.
Já era tarde demais quando nasceu
o lamento, tarde demais
quando quis dissipar-se o véu,
tarde demais quando despertamos
para a possibilidade do sol.
Deposito uma vela que não
se acende e mais escuro se torna
o dia que esqueceu de abandonar
as tortuosas vias da noite,
dia que se desfez intacto
diante da insanidade obscura da Terra
a acolher loucos nas catacumbas
avaras do silêncio eterno.

domingo, 13 de outubro de 2024

Histórias

 



Contam longas histórias os mortos,
todas sem fim nem começo.
não escolhem palavras,
usam todas as existentes
e ainda assim são capazes
dos mais criativos neologismos,
sempre precisos em sua irreversibilidade,
nos definem sem necessidade de cálculo.
Às vezes é preciso aparar
unhas e cabelos
e vestir um terno antes de ouvi-los.
Exigem nossa atenção e preparo
e não dispensam a embriaguez
da sobriedade para que
nos tornemos capazes
de distingui-los entre os sagazes
sussurros do inverno.
São inúmeras suas histórias,
recém- nascidas ainda que em reprise
de coisas ainda por acontecer.
É preciso aniquilar os olhos
para entendê-los
com a atrocidade auditiva do amor.
Nunca se sabe
o que suas histórias farão conosco.
De qualquer modo,
por estarmos indelevelmente vivos,
assombrarão nossos sonhos
ainda que estejamos despertos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Valsa

 



Há modos tantos
de inventar o vento:
flagrar a folha
em insana coreografia;
fecundar o embrião
da nuvem dissipada;
sorver o sopro,
expirar palavra,
imprimir o gesto
no corpo-ideograma.
Há muitos modos
de se ver o vento:
nenhum deles
dispensa o drama.
Há um modo outro
de convocar o vento:
revirar o olho
em seu avesso:
adormecê-lo cego ,
inspirar começo,
desmembrar de membrana
que voo alça,
e enfim curvar-se
à sua valsa.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Oráculo

 



Sempre é tarde demais,

já foi dito.

Sempre é cedo demais,

sussurrou alguém.

Sempre é apenas 

um modo do Nunca,

foi insistentemente explicado.

Nunca é um modo

de acontecer desacontecendo.

Talvez só o talvez

tenha a exatidão necessária,

anuncia o Oráculo de Delfos. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Resenha

 


RESENHA DO ESCRITOR FRANKLIN JORGE A RESPEITO DO MEU LIVRO ESCRITORAS INGLESAS: 

Escritoras Inglesas, de subtítulo De Mary Shelley a Ruth.Rendell [Editora Caravana, Ouro Prefo. 2024] nos proporciona uma leitura agradável e instrutiva, ao desvelar-nos de forma fluente o universo criativo de uma Plêiade de mulheres inteligentes e imaginativas que nos têm despertado a atenção e o interesse há gerações de leitores e e inquietos.
Seu autor, o polígrafo gaúcho Cleber Pacheco realiza uma obra que nos surpreende, delicia e nos faz pensar sobre um gênero que no curso do tempo tem-se enriquecido com novas aquisições e se mantido vivo e instigante.
Leitor acurado da obra alheia e, como tal atento às novidades, Cleber Pacheco amplia com a sua colaboração à Literatura Brasileira ao afirmar com esta obra breve e significativa a Cultura do nosso tempo

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Os Rishis de Aryavarta

 


Para quem tem olhos de ver
e ouvidos de ouvir
não há o Oculto.
Distantes dos cegos guiando
cegos, desvendam,
os rishis, os Arcanos do Cosmos,
leitura infindável
de um texto sem alfabetos.
capaz de eclipsar
a linguagem cifrada
da mais astuta Sibila ,
passagem pelo mais vibrante vivo
e o noturno mundo dos mortos.
Não há, para os rishis,
fronteiras a não ser o Insondável
onde reina, absoluto, o Indizível
e é desnecessária a memória,
Cosmos que continuamente se revela
sempre mais além de todo alcance
onde o Infindável se resolve
em infinito transcender-se
e até mesmo uma Rosa suspira ,
mesmerizada pela insana
lógica da Beleza.
( Rishis eram sábios da antiga Índia, videntes do Conhecimento .)