segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Relógio de sol

 


Há muito tempo o tempo
deixou de existir,
estátua de água
que o mundo esculpiu,
grávido de nada,
o instante gerou,
espírito do explícito
pela morte semeado,
subtrações da ausência
do inverso ao quadrado,
côncavo espelho
que o algarismo inventou,
relógio de sol
nas frestas da sombra
que o assombro criou.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Blavatsky


 

Ler o oculto 

até a chama que habita 

os ovários da matéria 

retirando

os véus que inflamam 

a febre do espírito,

esplendor que tece

filigrana e luz ,

magia e mistério,

árvore da vida

a coabitar todos os mundos

fecundando 

a Vida

em intersecções múltiplas

tecendo o desabrochar 

do Uno. 




quarta-feira, 30 de julho de 2025

Círculos

 



Uma construção circular com quatro torres idênticas, sendo que a torre do leste fica exatamente diante da torre do oeste.
O mesmo se dá com as torres do norte e do sul.
Os moradores da torre do leste afirmam que a torre do oeste é apenas um reflexo da sua torre e os do oeste juram que a torre do leste é apenas o reflexo da sua própria torre. O mesmo se dá com as torres do norte e do sul.
O centro da construção circular é inteiramente ocupado pela água.
Esta água crê que é toda a água existente no mundo.
Os habitantes da Lua afirmam que a construção circular é apenas um ponto em meio ao Oceano.
Já os habitantes de Andrômeda sentenciam que a Terra nunca existiu.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Peixes

 



Ontem ela me perguntou:
" Por que os tomates vêm sempre estragados?
Por que os pêssegos não têm gosto?
Por que as abelhas estão morrendo?"
Dizem os sábios que muitas vezes
é melhor não responder.
E eu que não sou sábio,
e eu que não sou santo,
sentei-me e escrevi um poema.
Talvez porque escrever
poemas seja a única
coisa que sei fazer.
Talvez porque escrever
poemas seja a única
coisa a ser feita.
O fato é que nem sempre
me calo e os peixes morrem
pela boca, dizem.
Talvez um dia eu pense em cultivar
una pequena horta.
Por ora continuo cometendo poemas.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Ideograma

 



Pousa na pedra
a borboleta,
oposto dum grito,
tortuosa escrita,
nítida caligrafia
de acaso e destino,
desencontro de encontros,
delícia e desdita,
sem palavras, só peso,
leveza e enlace
de ritmos, o oposto
dum pensamento,
clara noite, dia escuro,
pincel do delírio
nas tintas
do entendimento.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O gato e o mar

 



Na janela,o gato vê o mar.Ronrona e namora,quer a água como amor.Não sabe o que são ondas,apenas está afoito.Chegar até a praia é o seu grande desejo.

     Salta para a rua,atravessa-a,chega até o cobiçado local.

     O namoro principia.

     Nunca ninguém viu coisa igual.Um gato pela praia não é de todo dia.Passam pessoas,passeiam pelas calçadas,nenhuma só presta atenção em tão inesperado acontecimento:um gato apaixonado pelo mar.

   Água e felino não combinam,creem todos.Jamais viria à cabeça de quem quer que fosse semelhante pensamento:um gato apaixonar-se pelo mar.

     Ninguém vira o rosto para observar o gato a  rondar o inquieto líquido.Mas ali está ele,todo à espreita,à espera de uma distração,de um descuido das ondas.Talvez dê o bote.É que ele sonda as águas.E não compreende.

    Com o inesperado encontrou-se:uma coisa que balança suavemente e o chama para si.

    Vem comigo,dizem as ondas,vem.

     Difícil resistir.

     Resistente,ao invés de ser encantado,quer encantá-las.

    Também sei pular,diz.E salta para frente em exibição.

     Um estranho bailado se faz presente:o do gato que não só não quer render-se ao mar,como também pretende rendê-lo.E o do mar,igual em quase tudo,só mais largo,mais tentador.

     Difícil saber qual o movimento mais poderoso.Um,cheio de manha.O outro,vasto.

Um tentando vencer pela agilidade.O outro,pela grandeza.

     Duelo perigoso,onde os dois atacam,se exibem,tentadores e hábeis.Cada qual mais cheio de encantos.

     Eu consigo,sussurra o mar.

    Consigo eu,insiste o gato.

     Bailado e duelo plenos de beleza e susto.

     Homens e mulheres continuam seu passeio,nada percebem.Parecem tão preocupados.

    Enquanto isso,do inesperado beijo,do bailado e da embate nasce o inesperado:um ronronar-marulhar ou um marulhar-ronronar.

     Somente eles poderiam entender o significado de tal diálogo.

     Irrompendo em claridade,em tudo interferindo,surge,entre bicho e imensidão aquosa,no exato meio,o sol:

    Não sei o que pretendem vocês,interrompe.

     Meio atônitos,ambos olham para cima.É o gato que responde,insolente:

      Não te interessa.

     Estamos testando quem vai vencer,explicou o mar.

     Está na hora de resolverem esta situação,esclareceu o sol.

     Ali embaixo,cada um pensa que teria sido melhor se aquele intrometido não tivesse vindo dar ordens.

     Precisam,agora,encontrar uma rápida saída.

     Recua,em ondas,o mar.

     Para casa vai o gato.

     O sol,meio aborrecido,recolhe-se atrás de uma nuvem.

     Da janela o gato mira o mar e mia.

     Na praia,retorna a água e murmura.

     Mesmo à distância,o namoro prossegue.

     A vidraça através da qual os dois se enxergam,dirige-se a eles,compreensiva:

     Sim,sim,podem ficar à vontade.

 



sábado, 14 de junho de 2025

Erínias

 



Eis que vem o inverno,
avisam as Erínias,
tempo de amar o fogo
e dissolver as cinzas,
tempo de recuar
até o recôndito
e escarnecer do corpo
até que o gélido
a dúvida remova
e reencontre
as alma do inanimado.
Eis que o inverno chega,
avisam as Erínias,
consigo trazendo
o calor do quieto
enfim revelando
o ânimo do íntimo
que, sem alarde, escaneia
a carne do espírito
e mansamente nos lega
o que incendeia
o eterno num átimo.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Autor Convidado

 



Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP, Luciano Marcos Dias Cavalcanti é autor de vários livros de ensaios e estudos dedicados à literatura e à música popular brasileira, especialmente à poesia e aos poetas, dos quais se destacam: Orfeu, Prometeu e as Musas: mito e poesia em Murilo Mendes (2025), Chico Buarque, intérprete do Brasil (2024),  Poesia, o que é e para que serve? (2021), Poesia e transcendência na lírica de Jorge de Lima (2019), Emílio Moura: o poeta em busca do incognoscível (2017) e Metamorfoses de Orfeu: a “utopia” poética na lírica final de Jorge de Lima (2015). Tem dois livros de poemas publicados: Instantâneos do cotidiano (2020) e Aporia (2023).


Por que razão resolveu ir para o mar?

 

Resolveu ir para o mar.

Partiu de sua ilha,

num nevoeiro espesso.

 

Não temia o uivo do vento,

ser castigado pela fúria da tempestade,

ser tragado pelas ondas do oceano.

 

Montanhas de água erguiam-se e quebravam-se.

O mastro arqueava, a água subia no convés,

a embarcação sacolejava.

 

As tormentas eram permanentes,

incidentes inexplicáveis ocorriam,

ataques de selvagens de estranhas tezes tatuadas.


Seguiu viagem, em busca de maravilhas

levado pela corrente marítima,

deparou, amiúde, com o comércio de almas.


Não se amparou na luz de nenhum farol.

Não encontrou nenhuma ilha bem-afortunada,

para ancorar seu barco combalido, à deriva.


Foi para o mar para afastar a ameaça do vazio,

aquele sentimento incômodo da vida ser 

nada mais que um desperdício de dias.                                                                    



 Navegação

 

Singrando devagar um mar sonolento

– mergulhado em sua melancolia –,

o nauta atravessa o convés continuamente,

cada extremo da embarcação.

Da proa à popa,

mira as águas a serem vencidas pela nau,

expande-se no espaço;

despede-se das águas escorrendo para trás,

consome-se no tempo.

A solidão é intolerável.

A intensa concentração do eu

na imensidão do mundo líquido

afoga o infinito de sua alma

nas profundezas do desconhecido.

O mar é uma perene incógnita,

com suas magníficas matizes de azul,

esconde traiçoeiramente temíveis criaturas.

 

 

 Ao farol

 

“O Farol era, então, uma torre prateada em meio à névoa, com um olho amarelo que se abria rápida e suavemente à noite.” (Virgínia Woolf – Rumo ao Farol)

 

_ Enfim, vamos ao Farol?

_Após tantas mortes?

O que faremos lá?

Arriscaremos extinguir nossas vidas

nos atirando ao encontro de algum rochedo

nesse mar bravio?

Muitos se foram.

O ambiente está empoeirado.

O que resta é um pouco de luz verde-acinzentada

e sombras perambulando pelas paredes.

O faroleiro não deseja nossa companhia

com jornais e revistas.

Não quer que nossas ruínas entrem no seu lar

e acabe com o encanto de sua solidão.

Prefere ficar sozinho admirando o mar...

 

 

 


terça-feira, 6 de maio de 2025

Sincericídio


 


Comigo aprendeste 

inúmeras coisas:

roer as unhas,

arrancar os cabelos,

cortar os pulsos,

transmutar 

ouro em chumbo. 

Nem todos alcançam 

esse grau de maestria. 

Agora podes incinerar 

os dias com a sinceridade 

de um suicida em potencial.                                                                                                                                                                                         

quinta-feira, 6 de março de 2025

Poema em prosa

 



VERÃO 


Insanas de calor, cigarras zumbem na tarde tórrida. Sobre flores pousando, borboletas sugam o núcleo da Terra. A vida vegeta na súbita eolização do nada. A tarde se dissolve no céu que não ousa esmaecer suas cores. É vitríolo o tempo que de se esgotar não cansa. Agora já podemos cerrar os olhos e incinerar a seiva do instante. A vida não cessa mesmo quando bizarra ou circunspecta.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Comentário

 




A escritora Cecília Kemel escreveu este belo texto a respeito do meu livro A Conversão da Pedra :
Virgínia: e quem lhe tem medo?
Mais uma vez, Cleber Pacheco escreve, para o mergulho abissal da alma de seus leitores, um romance áspero, sólido e multifacetado, talvez uma de suas produções mais complexas.
“A conversão da pedra” vem protagonizado pelo menino Walter, embora o foco narrativo esteja muito assentado no elemento feminino vivido pela prima Virgínia e sua sensibilidade exposta ao fundo de um forte instinto maternal. De modo que Walter se torna quase um coadjuvante nessa rede tecida com engenhoso labor.
À medida que a narrativa avança, o ritmo se acelera e o enredo se adensa, desafiando o leitor a perseguir a história nos detalhes. O desprezo do autor pelas estruturas tradicionais é, sempre e cada vez mais, um mérito à parte que faz com que o texto se abra a multiplicações interpretativas. Isso permite uma longa viagem que pode caminhar desde o embate entre os anseios masculinos e femininos até os desdobramentos mais íntimos e viscerais de cada ser, suas crenças, suas verdades, sua fé: a pedra humanizada.
Tudo isso, é evidente, e por se tratar de Cleber Pacheco, desenhado com lápis de mestre, em magistral conhecimento linguístico e refinada ourivesaria poética.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Autor Convidado

 



 Alessandra Del’Agnese é escritora, gastróloga, poetisa, declamadora e cronista gaúcha, com uma trajetória na literatura, percorrendo o Brasil e Portugal. Sua arte é a fusão entre palavras e sabores, onde a escrita e a gastronomia se entrelaçam em uma verdadeira alquimia sensorial. Inspirada pela vida e pela espiritualidade, transforma emoções em poesia e experiências em arte, encantando com sua sensibilidade e criatividade.

A Travessia

 

Caminhava entre sombras e luzes,

Onde a terra se desfaz em ecos de ontem,

E o amanhã se ergue como um véu dourado.

 

Vi almas que choravam seu próprio silêncio,

Presas no tempo que não volta,

Esquecidas do toque, da voz, do olhar.

 

Mas adiante, onde os olhos ardem de aurora,

Encontrei um caminho esculpido em fogo,

Onde o medo é apenas cinza ao vento.

 

Ali, entre murmúrios de estrelas e versos não ditos,

Descobri que o amor não se perde—

Ele espera, paciente, na eternidade.

 

E ao seguir, senti tua presença no ar,

Como um segredo sussurrado pela criação,

Um chamado suave que me guiava adiante.

 

Era teu nome que a luz desenhava no horizonte,

E nele, a promessa do infinito.

 


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Amanheceres

 


Pode, a manhã,
descamar
os fractais do dia,
expelir ,
com presteza,
luminosidades da tarde,
reverter
clamores ocultos
na treva.
Pode, a manhã,
ser indício
duma outra
manhã,
mas com mais
clareza, menos
virtudes ou
mais ousadia.
Pode, a manhã,
descascar
segredos do tempo
e fazer soar
as cordas do olvido.
Pode, a manhã,
vislumbrar
o eterno,
tornar-se resquício
doutro infinito.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Danação


 


Não mais recolher

folhas e penas 

caídas, 

frutos esmagados

na polpa da terra,

não mais ingerir

o sangue das flores

que se mimetizam

em véu e crisálidas

na seiva do extático,

não mais a agonia

da flora que, imóvel,

se gesta 

em inanição 

pressuposta,

não mais o agreste

que se desdiz 

no rumor catártico

da floresta,

o pássaro 

que se despluma 

e belisca 

o orvalho 

para, partenogênese

súbita,

encontrar

a si mesmo 

em engenhosa selva ,

pássaro que se desmente

 e se  inventa, 

em estertor e apocalipse,

na celestial 

 danação da primavera.  


(Foto: Cleber Pacheco). 



quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Cordeiro Místico

 



Silêncio do ventre imaculado,
doce cordeiro
onde o cosmos canta
e o vazio vibra
em coloratura e breu,
água viva
de onde jorra
o fecundo que em nós tece
frutos de fome e saciedade,
cordeiro alvo
de estigma que brota
em dor serena
que reverbera muda
e sem flor
em androceu e gineceu,
cordeiro santo
esculpido em bruma
no tabernáculo do Logos,
vítima e glória do Inefável
em resplendor que enlouqueceu,
cordeiro ígneo
onde o oceano cessa
e principia e traz
à tona a pérola furtiva
do céu,
cordeiro místico,
onde a vida resgata
a vida na morte
em que o infindo
se desvaneceu.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Cisnes

 



Rogamos
para que intercedam,
por nós , os santos,
que transborde
sua Divina Graça
em nossa travessia na equanimidade
do deserto.
Rogamos
por cabeças, pés e mãos
que não nos desmintam
e que saiamos invictos
de nossa singular miséria.
Alguns não têm
olhos, outros não têm
dentes, a outros
a vida avisa
que no pranto reside
a Graça e que só
os descarnados
até os ossos sobrevivem
à corrosão da areia
incidindo impiedosamente
sobre nossa medula óssea.
Por fim restam
os cisnes que a tudo
ignoram deslizando
suas arestas na perfeita
contrição do lago.