sábado, 30 de novembro de 2013

IDENTIDADE (continuação)

(Segue outro trecho da história)

Sentei-me.
Pedro era seu nome.
Diante dele, ao invés do rosto, olhei ao redor. Inúmeros lápis coloridos e giz espalhados.Sem saber por onde começar,examinei-os,como se buscasse por alguma cor,uma tonalidade.Apanhei um deles,esperei.Nenhuma reação esboçou.
Descobrindo a pilha de papéis,peguei uma folha em branco,imaginando qual forma seria mais adequada para tentar chamar-lhe a atenção.Pensei em animais,flores,tentei uns rabiscos.Ocorreu-me arriscar a figura da mãe,ou dele próprio,quem sabe.Péssimo desenhista,pouca esperança tinha de agradá-lo.Queria ao menos despertar seu interesse;fazê-lo vir à tona seria esperar demais.Se até a beirada do mundo ou de si mesmo chegasse,já me daria por satisfeito.Ficando próximo-fisicamente,quero dizer-,no mínimo poderia sentir qual vibração possuía,quais frequências emitia.Lidava com isso todos os dias e podia detectar distúrbios de qualquer natureza,desarmonias,doenças.Em algum nível obteria esclarecimento ou provável pista a respeito do que se passava.
Consegui apenas ficar desorientado.
Aparentemente, nenhum sinal. Era como se um manto de silêncio o tivesse envolvido há muito tempo,um tempo muito mais longo do que se poderia sequer imaginar, trazendo consigo apenas vazio e esquecimento.Foi só então que de fato o olhei.
Nada, transmitiam rosto e olhar.Do fundo daquele nada,no entanto,um baixo-relevo de mistério fazia-se vagamente vislumbrar.
Comum,eu diria.Comum demais.Um menino de dez anos,sem nenhum traço marcante a não ser o alheamento que lhe era característico.Pouco poderia ser dito além disso.
Intrigado,nova tentativa cometi.
Cheguei mais perto. Ocorreu-me verificar quais desenhos aquelas pilhas de folhas continham. Um modo mais correto e acessível de aproximação, uma vez que aquela era a especialidade dele:desenhar.A única tarefa que executava sem o menor esforço,segundo a mulher,a exclusiva ocupação de sua vida.A decisão óbvia,concluí.
Apanhei uma e examinei.
Em seguida, outra.
Uma a uma vistoriei com todo empenho. Suspirei, desanimado.Não havia talento algum ali.Nenhuma delas fazia o menor sentido.
“Por aqui não há caminho”,percebi.”Melhor não insistir.”
Minhas alternativas continuavam a reduzir-se drasticamente. As possibilidades iam se fechando uma a uma,sem conduzir a uma solução,a uma resposta.Limitava-me a ir descartando possibilidades,perturbado.Compreensível mesmo só o fato de nenhuma profissional ter conseguido fazer um diagnóstico.
Nunca me deparara com uma situação assim antes.
“Grafismos”,ponderei.Típico de crianças.Crianças normais,diga-se de passagem,o que não era o caso.Mal comparando,esperara encontrar um novo Rembrandt e tratava-se,na verdade,de um Miró .Irritado,arrisquei espiar as outras folhas.Nenhuma novidade.Infindável quantidade de garatujas esparramava-se pelos papéis,nada significando.Absolutamente frustrante.
Desvendar qual a porta de entrada para tão oclusa atitude apresentava-se cada vez mais inviável.Esfíngico,o garoto não mantinha qualquer conexão com a realidade.Teria de conversar com a mãe e explicar,o que me prendia,evitando o momento de dissolver todas as ilusões dela.
“Ninguém jamais irá curá-lo”,concluí.Nenhum meio de comunicar-me com ele havia.
Restava reconhecer o fracasso e bater em retirada.
Levantei-me.
Melhor retornar à minha sala e prosseguir com as habituais consultas, exercendo o trabalho no qual mantinha.quase sempre,resultados.
Antes de eu sair, manifestou-se ele. Apanhando um giz azulado,pôs-se a executar rabiscos,só que desta vez no assoalho.
Parei.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

IDENTIDADE

(A partir de hoje,a cada dia colocarei um trecho da minha história Identidade aqui no blog até completá-la.Espero que gostem.Presente de final de ano aos leitores):

IDENTIDADE
Ele nunca frequentou a escola, ela avisou, nem obteve um diagnóstico dos médicos e dos psicólogos. Até hoje ninguém soube me dizer qual é o problema , o que está tentando dizer ou mostrar.
“Autista”, fora o meu veredicto após meia hora de observação na vazia sala onde ele se encontrava sentado no chão, alheio ao mundo.”Ou, no mínimo, esquizóide”.Não ousara aproximar-me ainda;já fizera o julgamento,todavia.Sozinho ali,como se nada existisse além de si próprio, órfão de brinquedos ,no mais profundo silêncio,mergulhado no abismo,emanava contundente ausência.
Voltei-me para ela. Chegara até mim para alinhar chakras.Desarmonizada,confusa,contara a sua história,socorro pedindo.Exalava ansiedade,evidente angústia. Possuindo invulgar aparência ,seu aspecto imediatamente chamaria a atenção de qualquer um.Com isso não quero dizer que fosse dotada de extrema feminilidade.Exótica,seria o mais próximo a declarar. Ao incomum acostumado, nada estranhei. Cura alternativa,minha especialidade.Com maus olhos visto,alvo de desconfiança e calúnias,também julgado era por muitos.Estudando o aceito e o renegado,um pouco de tudo conhecendo,muito de pouco aprofundando,arriscara-me.
Com ar cansado,desvalida,implorava uma solução que eu não tinha.
Vá até lá,pediu.
Outras vezes encontrara-me em tal situação. Pouco ou quase nada a fazer,impossível recusar.Doía-me perceber tamanha angústia.Criar falsas expectativas desagradava-me.Abandoná-la sem nenhum auxílio,também.
Sinceramente, não sei se,neste caso,posso ajudar.
Tente, murmurou.
Hesitante, dei alguns passos. A casa pareceu ainda maior e mais antiga, com janelas largas e altas,assoalho de madeira,rangidos.
De uma coisa tinha certeza: do fracasso.”Inútil”,pensei.”Neste caso,nem mesmo a cura metafísica irá funcionar.” Dar meia volta,retirar-me era minha vontade.Segui.
Avisado a respeito do seu único interesse, decidi ao menos olhar o material,tentar compreender alguma coisa.Sabia que algumas crianças podiam apresentar inacreditável aptidão para a matemática ou a música,um talento excepcional, muito além dos seres humanos considerados normais.Sabia ainda que se restringia,esse talento, a algum ramo muito específico do conhecimento.No restante,completa distância da realidade e recusa a entrar em contato com as outras pessoas.
Todas as tentativas anteriores haviam sido frustradas, avisara a mãe.Esmagador era o peso de tal afirmação.Sem esperança,aproximei-me.Talvez tivesse de passar por alguma prova e o momento chegara.Talvez fosse necessário aprender a aceitar os meus limites.Tentando encontrar uma explicação ou consolo,ofereci-me em sacrifício.
Sequer poderia imaginar o que viria.

Microconto

ENLACE

Era mais triste do que a maioria dos tristes.Seus olhos eram um reservatório de tristeza.Quando o irmão se suicidou,conseguiu abraçar os pais,compreensivo.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

VISÕES

Vejo
a floresta de símbolos:
raízes e folhas,
palavras e vogais,
sussurros e sinais,
arquitetura de alfabetos
dissolvida
no húmus do silêncio
semeando
rimas,mapas,veias,
discordâncias,
roupas para a nudez.


Posso ver
o solo esperando
mãos e pés
amassando lama,
imprimindo vestígios
aos peregrinos
que podem ler
a tipografia do Indizível.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ESCRITORES COMENTAM MEUS LIVROS

Do poeta premiado internacionalomente José Eduardo de Grazia a respeito do meu livro DA VIDA DISCRETA:

"Gostei muito de sua poesia,sintética,forte,com ritmos políssilabos curtos e conteúdos largos e imaginativos.Mostras que a poesia pode ser concisa e clara e ter conteúdo de primeira qualidade".

Do escritor e ator W. J. SOLHA a respeito do meu romance PRETO & BRANCO :

" O Preto & Branco é um thriller de mestre.Seu narrador é excepcionalmente bem construído.Com ele,avançar no livro tem um quê de navegar em nevoeiro cheio de icebergs".

domingo, 24 de novembro de 2013

ESCRITAS

SOMBRAS DESENHAM
CALIGRAFIAS
SOBRE O CHÃO
VEM O SOL
E CRIA
NOVOS ALFABETOS.

sábado, 23 de novembro de 2013

A MENINA QUE NÃO ESCUTAVA e outras histórias

Em seu livro de estreia pela Kronos Editora, a escritora Helena Britto Pereira aborda o universo infantil e temas difíceis,principalmente em se tratando de textos para crianças.Duplamente corajosa,portanto,a autora sabe ir tecendo as diversas histórias que compõem o livro,trazendo uma visão esclarecedora ao leitor a respeito dos temas escolhidos.
Tolerãncia,respeito às diferenças,medos e inseguranças, problemas nos relacionamentos,a morte,respeito à natureza são tratados com delicadeza e cuidado,trazendo uma luz às diversas situações.Em vez de evitar assuntos espinhosos,Helena consegue trazê-los à tona,oportunizando o contato e reflexão a respeito dessas situações complexas que muitas vezes as crianças se deparam e, não raro,os adultos não sabem como lidar.Daí a importância desta iniciativa.
Neste caso,até mesmo a fantasia está a serviço da realidade,simbolizando problemas e conflitos que fazem parte da vida e necessitam ser compreendidos e vistos sem preconceito.
Uma bela iniciativa,sem dúvida.
É de se esperar que outros livros da autora sejam publicados,pois ela apresenta um grande potencial,inclusive para textos literários também de outros gêneros.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

EXCESSO

Não me importo
de tomar veneno
todos os dias.
Só dispenso
as duas colherinhas
de açúcar

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

HÁBITO

Todos os dias
morro
no chá das cinco.
Veneno
nunca
tem hora marcada.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

SEREIA

Às vezes
o som do rio
é tão triste,
que até os peixes
se afogam.

JARDIM

Na ausência de flores,
coloco
seixos,
carcaças de cigarras,
borboletas mortas.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

ESSÊNCIA

Nunca
tente enxugar
minhas lágrimas.

Elas não são
orvalho,
mas seiva.

domingo, 17 de novembro de 2013

LINGUAGEM


olho

a intersecção
do instante

descubro

a gramática
do vivo

sábado, 16 de novembro de 2013

TALENTO

Para Elisabete


Minhas palavras
em tua língua
reverberam
no íntimo ouvido
daqueles que nos veem,
remodelando
os olhos e os sentidos
com outras mãos,
escultores de corações
em pictóricos sentimentos,
tecelões do amor
em cada fio
a se estender
nas fibras táteis
de alheias digitais,
artistas
da carne
e do indelével,
compártilhando
o singular
na doação
da medula do amor
e seus talentos.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

AMOR

Triste como um olho dágua,
às vezes o amor
traz,no liquefeito,
a possibilidade
do brotamento.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O ROMANCE GREGO (SÉCULO II a VI d. C.)

De acordo com Mikhial Bakhtin,o romance grego ou sofista traz "um tempo de aventuras profunda e meticulosamente desenvolvido".Alguns deles chegaram até nós de modo integral.São eles: A Novela Etíope,de Heliodoro;Leucippes e Clitofontes,de Aquiles Tatius;Chereas e Callirhoé,de Chariton;As Efesíaquas,de Xenofonte de Éfeso;Dafnes e Chloé,de Longus.
Tais romances foram a base e o modelo para os romances de aventura que surgiram posteriormente e que permaneceram muito semelhantes,sem trazer grandes alterações,mantendo o mesmo esquema geral ao longo do tempo.
As histórias giram sempre em torno de um casal que se encontra de modo inesperado.Ambos são extremamente belos e se apaixonam instantaneamente.Então uma série de situações complicadas acabam por mantê-los separados,até que,ao final,ocorre o casamento.
"Todos os elementos do romance (...) não são de modo algum novos: todos eles encontravam-se e foram desenvolvidos em outros gêneros da literatura clássica",afirma Bakhtin.(...) Entretanto,todos esses elementos de variados tipos de gênero são aqui fundidos e ligados numa nova unidade específica de romance,cujo elemento constitutivo é o tempo do romance de aventuras.Num cronotopo completamente novo - os elementos de vários tipos de gênero adquiriram novo caráter e funções particulares,e por isso deixaram de ser o que eram em outros gêneros".
E o autor acrescenta:
" O ponto de partida da ação do enredo é o primeiro encontro do herói com a heroína e a repentina explosão de paixão entre eles;e o ponto de chegada da ação do enredo é a feliz união dos dois em matrimônio.Todas as ações do romance desenrolam-se entre os dois pontos".
Podemos perceber que,sem dúvida,esta estrutura é muito familiar de todos nós até hoje.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A ARTE HERMÉTICA

TODA MOSTRA
ESCONDE
A OSTRA
QUE A EXPANDE,
NUM OFERTAR
QUE OCULTA
NÃO O VERTER,
A VOLTA:
CALCIFICAR
DO MISTÉRIO,
OMITIR
DO ENVOLTÓRIO,
EXPELIR
DO EVIDENTE,
RECUAR
DO RETIRANTE,
CONCEBER
O AUSENTE.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

PERSONAGENS

A literatura moderna,num dado momento,criou personagens simbólicas que representam toda a humanidade.
Cito aqui alguns casos importantes e interessantes.
No conto A QUEDA DA CASA DE USHER,de Edgar Allan Poe,podemos encontrar no nome USHER vários elementos,se desmembrarmos a palavra: primeiro temos US,pronme em inglês que significa nosso; depois o rponome She,que significa ela;a seguir,He,ou seja,ele e,por fim,HER,isto é,dela.
No romance O CASTELO,de Franz Kafka, temos o personagem K.,indicando seu anonimatom e despersonalização.De acordo com o crítico Harold Bloom,o castelo representa o vazio cósmico.
Em FINNEGANS WAKE,James Joyce criou H. C. Earwicker,que muitos críticos interpretam significando Here Comes Everybody (Aqui Vamos Todos Nós).
O escritor Samuel Beckett em seu romance MALONE MORRE ( MALONE DIES) também utiliza o nome da personagem para nos fonrcer a suas visão a respeito da condição humana. Encontramos as palavras MAN (Homem) e ALONE (só.sozinho),retratando a humanidade em estado de prostração e desvalimento,situada numa zona indefinida e precária,em escombros.
No romance A PAIXÃO SEGUNDO GH, de Clarice Lispector, as iniciais parecem indicar GÊNERO HUMANO,de modo que a personagem representa o ser humano em geral.
Outros autores fizeram o mesmo,mostrando a necessidade de um determinado período histórico-literário criar seres emblemáticos,realizando uma profunda reflexão a respeito de nossa existência.

Bharatanatyam

Além do abismo,
o movimento,
o que conta e tece
revestindo de gesto
o anônimo.

Da velha Índia
a forma
que redefine o mundo
na gênese do Caos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

FACE

Às vezes
mais anatòmica
é
face alheia
que a nossa,
imagem de espelho,
invertida.


Dentro
das retinas,
o reverberar
do estrangeiro,
íntimo como a morte.

TRECHOS DE O MESTRE DE ELLORA

( TRECHOs DO TERCEIRO VOLUME DA MINHA TRILOGIA DE FANTASIA O MESTRE DE ELLORA)

" Vira pórticos,magníficas colunas esculturas de Shiva portando o Khatvanga -uma espécie de lança com uma caveira,elefasntes,leões-,oilastras descomunais ,lingas,o imenso Buda diante do qual se curvara (...)"

" Ocorrendo a cada doze anos, o Khumba Mella ,encontro de devotos,sadhus,yogis,ascetas de toda a Índia ,era onde deveriam identificar e contatar um estudioso e alquimista (...)"

" _ Agora vamos num ambiente imprevisível para obter respostas fundamentais para a humanidade.É um momento muito importante.Antigos segredos serão revelados.- anunciou Dwashilli".

"Ao chegar a Sétima Raça,a morte física tornar-se-ia desnecessária".

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CONTO

CREPÚSCULO

Retornando para casa no final do dia,viu a velha diante da vitrine repleta de suculentas inutilidades.
Reparou na desconexão dos trajes,na descompostura das rugas e então soube,ali,entre a penumbra e a luminosidade dos refletores,o que era a eternidade.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

AUTOR CONVIDADO

* Marcelo Spalding é professor, escritor e jornalista. Formado em Jornalismo e Letras, é também mestre e doutor em Literatura pela UFRGS. Diretor da www.oficinaliterariaonline.com.br e idealizador do www.literaturadigital.com.br


CABRA-CEGA

Marcelo Spalding*

O lápis encosta na folha branca, amassada, amarrotada, um tanto úmida, mas ainda branca. Lápis de grafite negro, de base comida, o negro do grafite deslizando na superfície machucada da folha. Ali caberiam sonhos, projetos, desejos. Maria poderia, com o negro do grafite e o branco da folha, amenizar o sofrimento da filha, dar-lhe conselhos, confessar seus crimes, protegê-la de seus próprios erros. Maria poderia apelar para algum antigo cliente, um vizinho, alguém haveria de acreditar nela e procurar um bom advogado, quem sabe até amenizar aquele sofrimento todo. Maria poderia contar de suas colegas de cela, as ameaças, as brigas, as noites insones à espera da primeira unhada, do primeiro abuso.

Mãe (estranho chamar você assim), prometi para o pai e para a vó que nunca ia te escrever, nunca mesmo. Mas desde que segurei o primeiro lápis e numa folha colorida escrevi meu nome, nosso nome, sempre esperei por este dia, o dia em que poderia escrever tudo o que ficou entalado aqui, tudo o que devia ter dito nas visitas que nunca te fiz. Por que, mãe, por quê? Porque se meter com essa gente, nos abandonar assim? O pai sofreu tanto! Tivemos de sair da cidade, disso você deve saber. E a cada um ou dois anos mudamos de lugar para não nos acharem. O pai tinha muito medo. Eu, nem tanto, perdi quem poderia ter me dado uma infância, você, e com isso perdi a vontade de acreditar, levantar, partir, voltar, esperar. Não espero mais nada, mãe, não espero te perdoar um dia, ouvir tuas razões, mas também não posso acreditar nas do pai. Não, não posso...

Apertando forte o grafite negro, Maria aos poucos faz uma linha grossa, marcada, passeia com o lápis de um lado para o outro. Ela não tem a pretensão de transformar aquelas linhas em palavras, nem traços, simplesmente rabisca e lembra o dia que marcou sua vida para sempre. O olhar da pequena, ainda com cinco aninhos, de mochila nas costas para mais um dia de aula, o latido estridente do cão tentando espantar os homens, o sumiço repentino do marido, para nunca mais. Poderia escrever tudo isso, mas Maria não teve a chance de aprender a escrever, nem tempo de aprender a ler.

Você não estava aqui pra ver meus primeiros cadernos, pra me ajudar na primeira menstruação nem pra conhecer meu primeiro namorado. Mas sabe, mãe, talvez tenha sido melhor a gente viver separada, assim eu vou pra sempre pensar que você é melhor do que realmente é. Posso imaginar que a prisão foi um erro, que você só piorou as coisas tentando fugir porque não aguentou ficar longe de mim, que o pai mentiu o tempo todo. Posso nos ver passeando de mãos dadas por um parque, você me ensinando o alfabeto, você me perguntando qual cor de batom eu prefiro. Nos sonhos a gente pode tanto...

Segura as páginas enviadas pela filha como se a pegasse no colo depois de anos. Pesam, e pesam mais que o bebê, mais que a menina deixada com o pai depois daquele dia. Preenche os espaços vazios das letras, faz um pingo no lugar do ponto do “i”, pinta com cuidado cada “o”, e finge que as letras são dela, as palavras são dela. Prefere assim, acredita que a sentença proferida por aquelas palavras seria mil vezes mais definitiva que a de qualquer juiz, tem certeza da condenação, da raiva que a menina sente pelos anos distantes. Aprendera a viver sem a filha, agora aprenderia a viver com suas folhas brancas manchadas pelo grafite negro, e as guardaria como tesouro.

O pai, você sabe, nunca foi um pai. E eu, nunca fui uma filha. Precisava de alguém para cuidar da casa, cozinhar, e outras coisas de homem. Homem é homem. Também nunca mais falava de você, aliás ele fala pouco, desconfiava dos vizinhos, da própria mãe, de mim. A vó morreu e não deixou saudades. Estivesse viva e eu não poderia escrever, não poderia te mandar essa carta como não pude mandar as outras tantas que escrevi desde os sete anos.

Um dia uma das colegas de cela perguntou o que estava escrito na carta. A resposta, simplória e inevitável, foi: não sei, não sei ler. A outra pegou o papel das mãos de Maria e com dificuldade leu a primeira linha, “mãe (estranho chamar você assim), prometi...”. Mas Maria gritava tanto, e tão alto, que logo vieram as monitoras e a confusão começou. Maria não queria que lessem a carta para ela, não queria saber o que estava escrito, tinha medo de cada uma daquelas letras, medo e fascínio. Talvez adivinhasse o final que a filha reservara para ambas.

Mas escrevo agora, mãe, para você saber que amanhã estaremos mais perto do que nunca. Sei que eu errei, sei que vou pagar caro, mas eu precisava me libertar, às vezes a prisão é nossa própria casa e as grades, nossos medos. Sempre tive medo de fugir e depois o pai me achar, me achar e depois me bater, me bater e depois... Sempre tive medo, e pensei em morrer, e pensei em matar. Agora, não mais. Agora está feito. E sei que mais cedo ou mais tarde, a gente vai se encontrar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

DUAS PEÇAS DE ARTHUR MILLER

Garimpando no sebo,como usualmente se diz,encontrei um livro com duas peças importantes de Arthur Miller.Tive a sorte de encontrá-las no original em inglês e são A VIEW FROM THE BRIDGE e ALL MY SONS.
Ambas são dramas intensos que trazem conflitos cuidadosamente elaborados e desenvolvidos pelo autor,realizando uma séria reflexão a respeito de sentimentos,questões sociais e familiares.
A primeira,de 1947, é a história de Eddie, um homem simples,que aos poucos vai entrando em contato com os seus próprios sentimentos,sem ter exata consciência deles,ou melhor,recusando-se a admitir e a encarar o que de fato acontece consigo mesmo.Quanto mais nega aquilo que sente,mais intensas são as suas reações,tornando-as perigosas e agressivas.Todos à sua volta percebem o que está acontecendo,menos ele próprio,o que o leva a uma situação de profundo conflito consigo e com as pessoas do seu convívio, beirando o trágico.A lenta tomada de consciência conduz a uma luta inútil e dolorosa na tentativa de não admitir o que se passa em seu mundo interno.O texto é de grande intensidade e força.
A segunda, de 1955,mescla o pessoal e o social de modo perfeito,revelando também sérios problemas no âmbito familiar,derivados de uma moral duvidosa e de valores que se desfazem diante da guerra e dos interesses pessoais.Há uma desestruturação nos relacionamentos à medida que importantes revelações vêm à tona,desmascarando estruturas sociais que afetam o íntimo de cada um e o modo como as pessoas da família lidam consigo mesmas e umas com as outras.Tem, igualmente, alta voltagem dramática,muito próxima ao trágico,com sérias consequências para todos.Nada mais pode ser o mesmo após as descobertas realizadas.O processo de desintegração pessoal é irreversível.
Textos altamente recomendados.

domingo, 3 de novembro de 2013

FICÇÕES, de Jorge Luis Borges

O livro de contos FICÇÕES é uma das obras-primas do século XX.
Confesso que os meus contos preferidos são TLON,UQBAR,ORBIS TERTIUS;AS RUÍNAS CIRCULARES;A BIBLIOTECA DE BABEL;FUNES,O MEMORIOSO.
Metafísico,Borges aborda sempre a questão do tempo e do infinito.E, é claro, onipresentes,os livros.
Um trecho exemplar:
" Talvez a velhice e o medo me enganem,mas suspeito que a espécie humana - a única - está em vias de extinção e que a Biblioteca perdurará:iluminada,solitária,infinita,perfeitamente imóvel,armada de volumes preciosos,inútil,incorruptível,secreta".
Contos engenhosos,brilhantes,geniais,que nos lembram a literatura fantástica,mas vão além dela;que nos remetem ao romance policial,mas o ultrapassam por meio de questionamentos existenciais profundos.Bem se percebe aí a vasta erudição do autor,sua inventividade,seu gosto pelas histórias igualmente engenhosas de G. K. Chesterton, pela obra de Stevenson,literatura oriental,o gnosticismo,filosofia,misticismo , inúmera fontes reais e outras delas inventadas.
Uma leitura imprescindível para quem quer conhecer o melhor da literatura universal.