quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ANATOMIA

É rasa a retina
para conter corpos,
é funda a mina
que engendra mortos.

É rara a retina
isenta de miséria,
é rara a ruína
se fez memória.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

PRECISÃO

No ventre do arremesso,
o embrião do avesso,
repousa o parado,
o não parido,
embora engendrado
no tecer do acontecido.

Aflora no incerto
uma larva diversa,
que adiando o inseto,
sua fome conserva
no que não fica
e torna-se mais rica.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

CRÍTICA LITERÁRIA

(TrecHo do meu livro A ARTE POÉTICA DE ARICY CURVELLO recém publicado.O trecho faz parte do texto O POEMA CÉZANNE :CHAVE DA POÉTICA DE ARICY CURVELLO):

" Se a filosofia cartesiana realizava uma suspensão das coisas para se obter o juízo a respeito delas,a partir do século XIX podemos detectar uma tendência:suspender o Juízo,no sentido de algo acabado e definitivo,para obter uma nova visão do real.Isso foi feito de diversas maneiras por pensadores,artistas,escritores.No caso de Cézanne,o objetivo era suspender o habitual,o concluído,o já estabelecido,para ir muito além do familiar,revelando o antes do humano sobre o qual o próprio humano se funda.Sua 'pintura-pensante' ultrapassa o habitual,mas não é intelectualismo,é um resgate da força originária de onde tudo emana.Para isso,o pintor voltou-se para a paisagem,tentando alcançá-la em sua totalidade e plenitude.Só na totalidade torna-se possível captar o Algo tão buscado".

domingo, 27 de outubro de 2013

CONTO

(conto publicado no livro que saiu recentemente INVENTÁRIO DE DESIMPORTÂNCIAS)

VOZES

A MONJA EM VOTO DE SILÊNCIO.OUVE OS ESTALOS DAS TÁBUAS,O RUÍDO DOS GRILOS,O PINGO DA TORNEIRA,O SALTAR DO SAPO,O RANGER DE PORTAS.
DEPOIS,O RUMOR DA UMIDADE NAS PAREDES ,DO SUOR DOS VIDROS,DE UMA FOLHA QUE AINDA NÃO CHEGOU AO CHÃO,DE UM CARACOL DESLIZANDO NO MURO.
ENTÃO, A VOZ DOS ANIMAIS,VEGETAIS,MINERAIS.
QUANDO TORNA A FALAR,NINGUÉM NO CONVENTO COMPREENDE A LÍNGUA USADA POR ELA.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

RETRATOS (3)

DONA ZAIDA

Comecei a aprender piano tarde.E dona Zaida foi minha segunda professora,por assim dizer.Ela era uma senhora já com uma certa idade quando a conheci.Tinha a metade da minha altura,sempre bem arrumada,animadíssima.Além de piano,ensinava acordeon.
Sua vitalidade me impressionava.Acordava muito cedo,percorria uma longa distância até a aula de yoga antes de dar início às suas lições.Voltava para casa ao meio-dia,fazia almoço e retornava à tarde para dar continuidade ao trabalho.Estava sempre rindo (a não ser quando se zangava ao constatar que a lição de piano não havia sido estudada o suficiente).
E,é claro,tocava muitíssimo bem. Adorava ouvi-la.Às vezes pedia para ela demonstrar como era a partitura apenas para ouvir a sua execução.Percebendo o meu pequeno truque,às vezes consentia.Noutras,recusava-se a fazê-lo.
Outra característica é que ,ao conferir alguma nota musical na página,levantava os óculos "para enxergar melhor',dizia e sempre achávamos graça.Ou então,durante algum comentário,dizia "falando nisso,que nada tem a ver com isso...".
Certa vez me disse que eu tinha a capacidade de interpretar qualquer música à minha maneira e que aquilo era um talento inato.Ou a pessoa nascia com ele ou simplesmente não tinha.Foi um grande dia para mim.
Em um de seus aniversários,dei-lhe um livro a respeito de música brasileira e ficou muito contente.Em duas ocasiões,tive de interromper os meus estudos.E retornei,pedindo para continuarmos com receio de ouvir um "não".Mas sempre ouvi "sim".
O fato é que nunca terminei meus estudos de piano,tive de ir embora e fui seguir meus estudos literários.Todavia,todos os anos eu mandava um cartão ou ligava para ela.
Então liguei num Natal e o seu filho atendeu.Pedi para falar com a professora.Ele perguntou o meu nome.Respondi.Contou-me que ela havia falecido há alguns meses.Senti uma imensa tristeza,fiquei sem voz,as lágrimas escorreram.E ele me disse:"ela sempre falava em você,gostava muito de você".
Para mim foi e não foi,ao mesmo tempo,uma surpresa.
Desliguei o telefone em silêncio.
Tive muitos sonhos com a dona Zaida depois disso.Neles,eu estava sempre indo para a aula de piano e,de um certo modo,ela continuava a me dar lições.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

GLACIAL

O frio da neve
de muitos frios é composto,
eras que se condensam
na brevidade do instante,
estrela de abismos
em mínima neve.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CONTO

PASSOS

"Um dia por vez",disse ela a si mesma,cansada de resistir.Mudanças inevitáveis ocorreriam,sabia.Recuava,pressentindo o inevitável.
"Ainda não será amanhã",tentava convencer-se.Queria acreditar que ainda haveria tempo.
"Mais algumas horas",repetia a todo instante,certa de adiar um pouco,um pouquinho mais.
"Não,não é tarde",dizia em voz alta,quase gritando.
'É possível!" berrou com toda força.
Então alguém desligou os aparelhos.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

RETRATOS (2)

DIVA

Diva trabalhava numa biblioteca onde havia ,em sua grande maioria,apenas livros já bem antigos.Foi lá que encontrei O VERMELHO E O NEGRO,de Stendhal,JANE EYRE de Charlotte Bronte.E uma magnífica edição de a DIVINA COMÉDIA,de Dante.
Combinando com o lugar,ela vestia roupas sempre antiquadas e se comportava de modo antiquado (para os padrões de hoje),ou seja,com gentileza,sempre com gentileza.Tanto que se recusava a ler James Joyce porque o livro dele continha palavrões,contou-me,desgostosa.
Ela era de origem judia e amava os livros.Cuidava da biblioteca com extremo zelo.Eu sempre ia até lá e conversávamos na sala dela,em voz baixa,comentando a respeito de autores e obras.
Preocupava-se,também,com a alimentação e buscava orientar-me,indicando o que era melhor.
Como costuma acontecer com as pessoas gentis em nosso mundo,ela não era respeitada pelas outras colegas de trabalho,que mantinham sempre atitudes grosseiras.Preferíamos ignorar tal comportamento e contínuávamos conversando.
Muitas vezes ela queria me dar presentes que eu buscava,sem querer ofendê-la,recusar.Ela insistia,ia ao mercado e me dava frutas e até compotas que costumava fazer.Eu ficava constrangido,pois não queria que gastasse dinheiro comigo.Não era fácil evitar aquilo e,não raro,evitei visitá-la para que tal não acontecesse.
Durante vários anos,enquanto terminei o Ensino Médio e fiz o curso universitário ia até a biblioteca para falarmos a respeito de tudo o que fosse interessante em termos de cultura.
Certa vez não a encontrei e descobri que estava internada no hospital.No mesmo instante,fui até lá.Soube que tivera um grande choque ao se deparar com demonstrações de pura bestialidade humana.Pediu-me para que lhe cortasse as unhas da mão enquanto falava amenidades.
Da vez seguinte que fui à bilblioteca,soube que se aposentara.Não quis mais voltar ao ,local de trab alho depois do que acontecera.
Compreendi perfeitamente.Voltei para casa,pensativo.Há mesmo pouco lugar para a delicadeza no mundo em que vivemos.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

CHAVE

O monge
desenha iluminuras.
Quando contempla
o trabalho concluído,
procura pela inacabado
Livro da Vida.

sábado, 12 de outubro de 2013

RETRATOS (1)

SEU OSCAR

Aos quatorze anos fui para a Estação de Águas com a família.O lugar era mágico:hotel antigo com elevador de comida,paisagem serena.O ambiente inspirou-me a escrever,depois,uma história policial,cuja protagonista chamava-se Marta,minha versão particular de Miss Marple,é claro.Só que Marta era casada (e achava o marido um pouco burro) e tinha uma atitude tanto mais agressiva que a famosa personagem de Agatha Christie.Quanto ao livro,bem,tive o bom senso de perdê-lo anos depois. Na época,estava lendo,fascinado,o romance A MURALHA,de Dinah Silveira de Queiroz.Mas o verdadeiro fascínio ficou por conta de um velhinho que lá conheci e que se chamava Oscar.
Ele era de origem alemã,casado com Ana,uma senhora húngara que viera para o Brasil por causa da guerra.Para mim ,ela era completamente húngara,se é que me entendem:óculos húngaros,penteado húngaro e sotaque húngaro. Ao menos assim eu a via então.Ela recusava-se a falar a respeito da guerra e demonstrava verdadeiro pavor de tocar no assunto.Quanto ao marido,dizia,não sem certa irritação, que era muito mais organizado do que ela.Andava sempre com um sombrinha,pois tinha horror ao sol.
Quanto a ele,tomei conhecimento após estar alguns dias na Estação de Águas.Certa tarde,sem ter o que fazer,fui para o pátio,ao lado do velho hotel.Um grupo de senhores idosos encontrava-se ali.Conversavam.Entre eles,o seu Oscar.
Fui atraído por aquela voz doce que contava histórias com uma serenidade de sábio chinês.Fiquei à distãncia,ouvindo,atento.Mergulhei nas palavras dele como se lesse um saboroso romance.
Após algum tempo,os outros se afastaram e ele me chamou,tendo percebido que eu o ouvia com tanta atenção.
A partir daquele momento,ficamos amigos,embora pareça improvável que um adolescente de quatorze anos e um senhor de setenta possam ser amigos.O fato é que nos entendíamos perfeitamente.
Nunca conheci pessoa mais doce.Era sempre gentilíssimo,educado,nunca alterava a voz e falava interminavelmente,sem nunca cansar os ouvintes.Era uma espécie de Sherazade germânica masculina.Sempre tinha coisas para contar.
Quando parti,entristecido,pedi o endereço dele.E,chegando em casa,de imediato escrevi uma carta e enviei.
Nossa correspondência durou alguns anos.Ele sempre enviava muitas folhas preenchidas com uma letra impecável,contando tudo nos mínimos detalhes.Guardo suas cartas até hoje.
A certa altura,parei de enviar cartas.E nunca mais soube dele.Melancólico,tomei a decisão conscientemente.Todavia,só muito depois percebi o motivo da minha atitude:tive medo.Medo de um dia parar de recebê-las.Ou de chegar um aviso do seu falecimento,de saber que aquela doçura não existia mais.É que eu preferia guardar comigo,para sempre,a impressão de que seu Oscar continuava vivo e prestes a enviar mais uma de suas longas cartas com suas infindáveis histórias.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

JORNADAS DE CURA

(Mais alguns trechos do livro:)

* " Sem dúvida é importante ressaltar que o trabalho aqui relatado não tem nada de convencional.Ele foge dos padrões aceitos pela ciência oficial,que ainda tem tanto a aprender.Ele desafia o conhecido e explora o desconhecido,demonstrando que o ser humano é capaz de muito mais do que se possa imaginar."

* "A interatividade faz com ambos,curador e paciente,cresçam à medida que caminham juntos ,enriquecendo as próprias vivências durante o período de tempo em que trabalham."

* " (...) conhecer as histórias de outros nos faz entender melhor as nossas histórias pessoais".

* " Não raro os diferentes modos de curar acabam surgindo,por diversos meios,para o curador."

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ZEN

Pregar botões é uma arte.

Martelar pregos,temeridade.

Sereno,o mantra
reajusta
as formas.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

NOVO LIVRO

Meu livro JORNADAS DE CURA a respeito do meu trabalho terapêutico já está disponível e à venda.
Coloco aqui alguns trechos:
* " Os relatos aqui apresentados têm o intuito de auxiliar não só os curadores,mas todos aqueles que buscam um novo caminho para as suas vidas,tornando-as melhores,mais iluminadas e felizes.Vivemos um tempo de grandes desafios e quanto mais esclarecimentos tivermos a respeito de nós mesmose de como podemos tornar a nossa trajetória mais fácil,melhor".


* "Percebia à minha volta muitas situações complicadas,crises e conflitos e estava muito inquieto,tentando encontrar soluções,colaborar e agir.Não podia ficar quieto olhando tudo aquilo acontecer sem fazer nada.A necessidade de ajudar tornava-se cada vez maior e intensa".


* " Existem muitos sistemas de cura.Todos eles podem ser eficazes e proporcionar grandes benefícios às pessoas.O importante é que o curador encontre o sistema que é mais adequado ao seu modo de ser,aquele em que se sente melhor,muitas vezes gruiado pela própria intuição".

* " A consciência humana tem muitos princípios ou níveis".

* " Cada ser humano tem as suas necessidades e se encontra num estágio próprio de evolução.Nenhum curador pode ou deve esquecer disso".

VIDA

O velho
guarda-louça
oculta
tesouros de açúcar
em fina porcelana.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

CONTO INSÓLITO

Havia uma casa vazia no fim da rua.
E um grande silêncio dentro dela.
Abertas estavam portas e janelas.
Turbulento era o mundo do outro lado da rua.
Chegou o novo morador e mandou trocar a fechadura.
Queria trancar o silêncio de modo mais seguro.
Restavam,porém,os quadros sem moldura.

domingo, 6 de outubro de 2013

ARTE POÉTICA

Transmutar
claro e escuro,
não deter
sopro e suspiro,

transubstãncia
de corpo e matéria,
fluir do silêncio
em verbo e memória,

transmutar
chumbo em ouro,
converter
esfera em aro.

(Poema publicado no meu livro ARTE).

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

CARTA A PENÉLOPE

(do meu livro CARTAS IMAGINÁRIAS)

Há tantos anos tento retornar a Ítaca sem alcançar êxito,que já começo a duvidar de Ítaca.Só você poderá me dizer se Ítaca existe de fato.Ou se existiu algum dia.
Descreva-me,não nossa casa,mas as pedras,as árvores,os animais,a cor do céu e da água,o odor que a permeia,as variações da temperatura,o sol e a lua,estiagem e chuva,as cores,os sons.
Conte-me tudo em todos os detalhes,como se contasse a um cego,pois assim talvez eu consiga retornar.O que impede o retorno não são os desafios,obstáculos e perigos,sequer os deuses,mas a minha descrença para com Ítaca ou a descrença de Ítaca para comigo.Não sei ao certo.Nada posso afirmar ou garantir.Resta o receio de muito navegar e chegar a lugar nenhum.
Só sei que à noite,em meus sonhos,e durante a vigília,é grande e infinito o mar.
ULISSES

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

XADREZ

(POEMA DO MEU LIVRO VIDA REINVENTADA)

O que vês
neste intervalo
entre torre e cavalo
é apenas o quadrado
que fica doutro lado
entre jogo e vazio
aquilo que no cio
oferece possível rota
para xeque ou derrota:
estando calado
é mais que um quadrado:
nada parecendo
pode ser ou fica sendo

terça-feira, 1 de outubro de 2013

IMAGEM

Na água,
o reflexo
revela
um outro
mundo possível.