sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Danação


 


Não mais recolher

folhas e penas 

caídas, 

frutos esmagados

na polpa da terra,

não mais ingerir

o sangue das flores

que se mimetizam

em véu e crisálidas

na seiva do extático,

não mais a agonia

da flora que, imóvel,

se gesta 

em inanição 

pressuposta,

não mais o agreste

que se desdiz 

no rumor catártico

da floresta,

o pássaro 

que se despluma 

e belisca 

o orvalho 

para, partenogênese

súbita,

encontrar

a si mesmo 

em engenhosa selva ,

pássaro que se desmente

 e se  inventa, 

em estertor e apocalipse,

na celestial 

 danação da primavera.  


(Foto: Cleber Pacheco). 



quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Cordeiro Místico

 



Silêncio do ventre imaculado,
doce cordeiro
onde o cosmos canta
e o vazio vibra
em coloratura e breu,
água viva
de onde jorra
o fecundo que em nós tece
frutos de fome e saciedade,
cordeiro alvo
de estigma que brota
em dor serena
que reverbera muda
e sem flor
em androceu e gineceu,
cordeiro santo
esculpido em bruma
no tabernáculo do Logos,
vítima e glória do Inefável
em resplendor que enlouqueceu,
cordeiro ígneo
onde o oceano cessa
e principia e traz
à tona a pérola furtiva
do céu,
cordeiro místico,
onde a vida resgata
a vida na morte
em que o infindo
se desvaneceu.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Cisnes

 



Rogamos
para que intercedam,
por nós , os santos,
que transborde
sua Divina Graça
em nossa travessia na equanimidade
do deserto.
Rogamos
por cabeças, pés e mãos
que não nos desmintam
e que saiamos invictos
de nossa singular miséria.
Alguns não têm
olhos, outros não têm
dentes, a outros
a vida avisa
que no pranto reside
a Graça e que só
os descarnados
até os ossos sobrevivem
à corrosão da areia
incidindo impiedosamente
sobre nossa medula óssea.
Por fim restam
os cisnes que a tudo
ignoram deslizando
suas arestas na perfeita
contrição do lago.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Véu


 

Nada direi 

a respeito das coisas

não ditas,nada

acrescentarei ao seu exame

perpétuo, não vacilarei

diante das inscrições nunca

decifradas, só poderei legar

ao enxame de sussurros 

o anel da esterilidade,

nada direi

a respeito da bruma

e as rotas de colisão 

nela engendradas,

mas ficarei pleno

e atento à cremação 

do insensato na acidez

da finitude, ao dia

que requer parto

nas horas extremadas, 

especulação de pólen 

no sombrio das mariposas,

viver que se vela, 

palavra em invólucro,

chama quebrada.  


 


 


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Intervalo

 


Sobre
o piano dorme
a velha gata ,
antecipando já
os primeiros acordes
da quinta sinfonia de Beethoven.
Não há ratos para brincar,
nem piruetas para exibir,
só o aroma
do anonimato das coisas
que se recusam
a dizer onde estão.
Pode, agora, a gata
vasculhar
todas as imagens sem pronúncia
que se anunciam
no intervalo mudo
das estações.
Ferina e livre,
pode, enfim, revelar
a voz de soprano
do vazio.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Silêncio


 

E  porque hoje escreverei 

solicito o vosso silêncio,

a vossa palavra 

que nada direis,

que não fareis

nenhum gesto,

que permanecereis 

alheios  à vossa vontade. 


E porque hoje direi 

sim e não,

o silêncio se curvará 

desdobrado em sustento 

que nada afirma, só inscreve 

a tábua sem mandamentos. 


E porque hoje escreverei,

saldarei a minha dívida

a contento e esboçarei

o que não tem forma 

para desenhar o adeus. 


E porque hoje é hoje

nada direi que não seja 

pranto e alento 

inscrito nas folhas túrgidas 

da matéria do esquecimento.  

 



terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Novo livro : A Conversão da Pedra

 


Texto do escritor Franklin Jorge: 

Em meio a um tempo de superficialidade literária, em que a verdadeira arte parece perdida, Cleber Pacheco surge como uma voz autêntica e rara. Dono de um talento múltiplo, ele mantém viva a tradição de grandes escritores, oferecendo uma obra original e inquietante que lembra ao leitor a força e a profundidade que a literatura pode ter. Sua escrita, marcada por uma personalidade forte e singular, destaca-se em meio à maré de textos vazios e traz de volta a essência dos grandes criadores literários.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Atlântida

 



Há tanto tempo
o mar não vejo,
que me pergunto:
virou sertão?
ainda há onda
em seu ventre estremunhado ?
ainda reverbera
na insanidade do sol?
Não há respostas
uma vez que
até ele indo,
não reconhecerei
frêmito e afronta,
o mar, em mim,
ainda espraia
seu furor na costa
da antiga Atlântida
e não reconhece
a indiscrição do banal
e dos passeios dos turistas
por areias sintéticas,
o mar, em mim,
mesmo em movimento
repousa
ali onde os deuses
nunca alcançam.