quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Via

 


Caminho pelas mesmas paisagens,
que são sempre outras:
uma réstia, uma sombra
me avisam
que mundos aqui
se transfiguram
entre os sussurros do frio
e as fronteiras do inverno
e a vida é logo refeita
antes ainda do adeus.
Hoje percorro a antiga via
onde muitos trincaram
seus pés ; se retiro
mansamente os sapatos
é porque aqui já estive
outrora.
(foto: Cleber Pacheco).


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Autor Convidado

 


Milton Rezende, poeta e escritor, mineiro de Ervália (MG). Morou em Juiz de Fora (MG), Varginha (MG), Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Possui quinze livros publicados e tem um Site e um Blog:

www.miltoncarlosrezende.com.br

estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).


A VERDADE SOBRE A MENTIRA

 

 

Tenho dito mentiras

sem tomar consciência

de sua contextura falsa.

 

Não tenho desmentido o que digo

pois tenho a concepção de que minto

sobretudo para mim mesmo.

 

Sendo assim as minhas mentiras

não podem acarretar

na perda de qualquer afeição.

 

E já que é precisamente sobre a falsidade

que se alicerça o convívio entre os homens,

as palavras de mentira ou verdade que eu disser

nada significam de permanente num relacionamento.

 

Mas não posso deixar de convir

que assim fazendo, a cada dia

eu amanheço mais distante de mim.

 

Milton Rezende “in” O Acaso das Manhãs




 

 ANDARILHO DEITADO

 

cheguei cansado para deitar

sobre a cama de papelão no chão

e debaixo da marquise gotejante.

 

uma poça de água da pingadeira

sobre o passeio do mercado desativado

onde dormiam indigentes à espera do fim.

 

dormir é dócil como o bebê embriagado

desapercebido dos planos de Deus.

 

Milton Rezende “in” Um Andarilho Dentro de Casa


ENQUANTO A CHUVA NÃO PASSA

 

Os dias acalmaram o sonho,

como se para isso não bastasse

a ausência de teus olhos.

Mas na noite um verso simples

brotava do silêncio para dar

uma esperança menos triste

ao cotidiano.

Ao longe eu visualizava uma imagem

pensativa que acreditava estar

preenchendo o hálito da noite

e a chuva no telhado com teu

sorriso mágico. Mas a distância

não me permitia tais conclusões.

Seria necessária a palavra e a

tua presença para restabelecer a paz

e aquela sensação confiante que

tínhamos quando crianças.

Coordenar as coisas e arrumar

a casa num ambiente tranquilo

para receber a realidade,

dissipar os sonhos

e adormecer em teu gesto.

 

Milton Rezende “in” A Sentinela em Fuga e Outras Ausências

 

 

 

 

 

 

 


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Resenha


 

   Texto do escritor Dilan Camargo a respeito do livro: 

Li o teu livro com grande interesse e muito gosto. Uma escrita límpida e fluente que me puxou para dentro das páginas. Possui uma admirável clareza e coerência literária. Texto bem estruturado, sem brechas.
Escolheste um ótimo título para mostrar as existências excluídas das personagens que também foram “sepultadas” numa torre do silêncio de suas vidas solitárias, atingidas pela fragilidade da condição humana. Humanas, mesmo assim.
Cinco personagens, em espaços geográficos separados, nos limites de ambientes caseiros diferentes, com ocupações e interesses variados, vivem fustigadas pelos acontecimentos que cercam a vida de cada uma. E, afinal, de todos os humanos no âmbito de suas escolhas e circunstâncias.
Seus destinos são incompletos e infelizes? Ou simplesmente são destinos? Poderiam ter vidas heroicas, fascinantes, aventureiras, ou ditas normais? Há tantas hipóteses de vida! Nem todas se realizam.

A novela é uma metáfora da vida, tantas vezes tentada a ser escrita por escritores e poetas, mas nem sempre realizada. Cleber Pacheco conseguiu. Revelou as solidões individuais que se dissolvem na imensa solidão deste “vasto mundo.” Nosso mistério existencial só pode ser iluminado por uma metáfora. Daí precisarmos de transcendência na prosa e na poesia.   

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Cesário Verde ( 1855-1886) Lisboa-Portugal

 



HEROÍSMOS 


Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo0 disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e nágua quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Voo

 



Eu sou o que você
nunca compreenderá
com seus olhos pardos
de hiena faminta
com sede de sangue.
Conheço bem a savana,
nela até os elefantes morrem
na fome de marfim
que os persegue e dizima
em atos de sobressalto,
antro de repasto e carcaças
onde o viver
se consome e consuma.
Eu sou o voo
que tudo vê,
que é apto e capta
onde a serpente sibila
e depois dissolve as nuvens,
aves voláteis,
suas irmãs de leveza.
Conheço bem os quadrúpedes:
nunca reconhecem os bípedes,
falta-lhes a inteireza que preza
o mundo que não é presa;
o leve sussurro da asa ,
mais que o estrondo, ensurdece
olhos que são só certeza.