quarta-feira, 31 de julho de 2024

Ninho

 


Tudo é vento e transtorno
nos quadrantes semeados
entre corvos e espantalhos
em sul e norte do impreciso.
Só o não-tempo
sobrevive para aliciar
cacofonia de agonias geminadas
no desvario do torvelinho
onde o exato se improvisa
quando no intacto brota
o estático que transita
entre penas e raízes
e a estranheza, grávida ave,
sobrepõe indelével ovo.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Ensinamentos

 



É preciso vencer o mundo,
ensinam os yogis.
É preciso compreender o mundo,
advertem os filósofos.
É preciso viver o mundo,
gritam os boêmios.
É preciso encontrar o poema ,
avisam os poetas,
bem ali, onde o mundo
nos crava a faca.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Estrela

 

Hoje o sol disse
gato, árvore, pedra,
tudo límpido e aceso
no silêncio
e ninguém via
- nem o carteiro a trazer
novidades
nem a mulher que costura
mortalhas -
o dia a exibir-se
ainda não acontecido ,
todo líquido e translúcido
e atento
e ninguém ouvia
- nem o mercador apregoando
preços
nem o afogado clamando
por socorro -
o dia a arder
todo perene
ainda a inventar
o que já existia.
Gato, árvore, pedra?
Nítidos raios
duma mesma estrela.
Pode ser uma imagem de eclipse






sábado, 20 de julho de 2024

Biblioteca

 


(Para Maria Elisabete in memoriam).
Rever, sozinho,
o que juntos já vimos
não é rever:
é desnudar-se
em pleno inverno
enquanto o ar açoita
os alvéolos da melancolia;
nela até a luz sangra
e coagula a angústia
do que não pode ser
transpirado.
Viver não é só um corpo
à deriva
testemunhando a lenta
polinização da memória,
é, também, o mumificar
do mudo
que, ao latejar, se calcifica
onde a ausência
nos alcança.
Chegará,
também, meu dia
de calar-me
e aí só restarão
meus livros não escritos
depositados
infalivelmente
na Biblioteca do Nada.
Nenhuma descrição de foto disponível.


terça-feira, 16 de julho de 2024

Fome

 Chacais rondam

a savana.
Não se contentam
com nada menos
que a morte.
Jamais saciados
pelo ultraje da beleza,
revolvem
o que de osso é isento:
carcaça crua
do tempo
a violar o inodoro.
Chacais vigiam
o deserto,
dele a areia devoram
moldando a paisagem
com instinto que desventra
insaciável fome
que a desnutre e sustenta.
Nenhum deles Anúbis,
com astúcia exumam
o que não tem corpo:
neles sobrevive
só o que está morto.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Canto

 



Sobre o muro havia
uma laranja,
resplandecente, perfeita, intacta,
sem vestígios de quem
ali a depositara.
Para ela nasceu
o pássaro,
para dilacerá-la, para desconfigurá-la
e depois injetar
seu canto estridente
ferindo o ar num gesto prometeico.
Naquele instante, porém,
ainda resplandecente, ainda intacta,
do seu endocarpo exalava
o desafio de desnudar-se
simplesmente perfeita.
De cada gomo a ser ingerido
exsudava o olor de quem está pronta
para o sacrifício da beleza.
Se naquele instante a visse
o pássaro,
perderia para sempre suas asas
cosendo com penas afoitas
toda a terra
e calaria para sempre
seu canto ao desvendar
que se deposita,
mais intenso, o mundo,
onde reverbera o mudo.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Autor Convidado

      



   Nero, pseudônimo de Roberto Filipe Assis Simões é Licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com Minor em Estudos Portugueses e Mestre em Ensino de Português pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.É professor de Português e de Literatura Portuguesa no Ensino Secundário. 



XVIII 

SE UM DIA ME SECAREM OS VERSOS 

Se um dia me secarem os versos,

 cavarei, absorto, a terra,

subirei, não morto, a serra,

andarei por aí,

seguro de que 

mais fértil é aquele que erra.


Se um dia me levar o esquecimento

e me faltar o que dizer,

viverei, translúcido

como a luz que m'esventra.


Darão as letras lugar ao vazio,

nas fatias que m'extraem 

de estio a estio.


Ficarei bem. 



 GESTO

Calco o húmus, o mofo e o bolor,

que pelas solas se m'entranham,

 do hálux aos montes e ao tarso

e ao fundo de mim. 


Sinto o frescor , a decomposta dor,

os vermes que dos calos

aos veios me sugam e aos ossos

e aos talos de mim. 


Não me desgasto, não me retraio,

Pela diáfana pele, a luz que trago,

que os reverte e faz florir,

que os adverte e faz sentir

a metamorfose plural,

o auxílio natural,

a comunhão total.


Na barriga, agora, o bago insano,

o fenômeno raro, hermafrodita,

o sêmen e a prova súbdita.


Renasço na palavra.

E nela... a possibilidade. 


    






          

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Pré-lançamento


 


   Já está em pré-lançamento meu livro de ensaios ESCRITORAS INGLESAS - De Mary Shelley a Ruth Rendell. 

   Livros comentados; Frankenstein, Orgulho e Preconceito, Jane Eyre, O Morro dos Ventos Uivantes, A Festa ao Ar Livre e outras histórias, As Ondas, Sangue Inocente, A Cabeça Decepada, Noturno para Margaret. 

   O livro pode ser adquirido por meio do link: https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/escritoras-inglesas-de-mary-shelley-a-ruth-rendell




quinta-feira, 4 de julho de 2024

Presença

 



Hoje o dia
não aconteceu,
o frio paralisou
o vento, as poças d'água
não refletiram as pegadas
dos passantes,
o céu foi engolido
pelas nuvens,
até mesmo o inferno
se recusou a dar castigos.
Hoje é apenas um dia
engessado nas trincheiras,
adormecido nos casulos,
rejeitado pelos anjos
enquanto a noite engole
as vísceras do tempo.
Nada se pode dizer
a seu respeito
a não ser que repartiu
a concavidade do nada
para saciar os famintos.
Hoje foi apenas um dia
em que espíritos e espectros
não assombraram
as engenhosas sombras
do solstício esparramando
sua ausência convexa
nos rastros insanos
de sua razão alada.