quarta-feira, 18 de junho de 2025

O gato e o mar

 



Na janela,o gato vê o mar.Ronrona e namora,quer a água como amor.Não sabe o que são ondas,apenas está afoito.Chegar até a praia é o seu grande desejo.

     Salta para a rua,atravessa-a,chega até o cobiçado local.

     O namoro principia.

     Nunca ninguém viu coisa igual.Um gato pela praia não é de todo dia.Passam pessoas,passeiam pelas calçadas,nenhuma só presta atenção em tão inesperado acontecimento:um gato apaixonado pelo mar.

   Água e felino não combinam,creem todos.Jamais viria à cabeça de quem quer que fosse semelhante pensamento:um gato apaixonar-se pelo mar.

     Ninguém vira o rosto para observar o gato a  rondar o inquieto líquido.Mas ali está ele,todo à espreita,à espera de uma distração,de um descuido das ondas.Talvez dê o bote.É que ele sonda as águas.E não compreende.

    Com o inesperado encontrou-se:uma coisa que balança suavemente e o chama para si.

    Vem comigo,dizem as ondas,vem.

     Difícil resistir.

     Resistente,ao invés de ser encantado,quer encantá-las.

    Também sei pular,diz.E salta para frente em exibição.

     Um estranho bailado se faz presente:o do gato que não só não quer render-se ao mar,como também pretende rendê-lo.E o do mar,igual em quase tudo,só mais largo,mais tentador.

     Difícil saber qual o movimento mais poderoso.Um,cheio de manha.O outro,vasto.

Um tentando vencer pela agilidade.O outro,pela grandeza.

     Duelo perigoso,onde os dois atacam,se exibem,tentadores e hábeis.Cada qual mais cheio de encantos.

     Eu consigo,sussurra o mar.

    Consigo eu,insiste o gato.

     Bailado e duelo plenos de beleza e susto.

     Homens e mulheres continuam seu passeio,nada percebem.Parecem tão preocupados.

    Enquanto isso,do inesperado beijo,do bailado e da embate nasce o inesperado:um ronronar-marulhar ou um marulhar-ronronar.

     Somente eles poderiam entender o significado de tal diálogo.

     Irrompendo em claridade,em tudo interferindo,surge,entre bicho e imensidão aquosa,no exato meio,o sol:

    Não sei o que pretendem vocês,interrompe.

     Meio atônitos,ambos olham para cima.É o gato que responde,insolente:

      Não te interessa.

     Estamos testando quem vai vencer,explicou o mar.

     Está na hora de resolverem esta situação,esclareceu o sol.

     Ali embaixo,cada um pensa que teria sido melhor se aquele intrometido não tivesse vindo dar ordens.

     Precisam,agora,encontrar uma rápida saída.

     Recua,em ondas,o mar.

     Para casa vai o gato.

     O sol,meio aborrecido,recolhe-se atrás de uma nuvem.

     Da janela o gato mira o mar e mia.

     Na praia,retorna a água e murmura.

     Mesmo à distância,o namoro prossegue.

     A vidraça através da qual os dois se enxergam,dirige-se a eles,compreensiva:

     Sim,sim,podem ficar à vontade.

 



sábado, 14 de junho de 2025

Erínias

 



Eis que vem o inverno,
avisam as Erínias,
tempo de amar o fogo
e dissolver as cinzas,
tempo de recuar
até o recôndito
e escarnecer do corpo
até que o gélido
a dúvida remova
e reencontre
as alma do inanimado.
Eis que o inverno chega,
avisam as Erínias,
consigo trazendo
o calor do quieto
enfim revelando
o ânimo do íntimo
que, sem alarde, escaneia
a carne do espírito
e mansamente nos lega
o que incendeia
o eterno num átimo.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Autor Convidado

 



Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP, Luciano Marcos Dias Cavalcanti é autor de vários livros de ensaios e estudos dedicados à literatura e à música popular brasileira, especialmente à poesia e aos poetas, dos quais se destacam: Orfeu, Prometeu e as Musas: mito e poesia em Murilo Mendes (2025), Chico Buarque, intérprete do Brasil (2024),  Poesia, o que é e para que serve? (2021), Poesia e transcendência na lírica de Jorge de Lima (2019), Emílio Moura: o poeta em busca do incognoscível (2017) e Metamorfoses de Orfeu: a “utopia” poética na lírica final de Jorge de Lima (2015). Tem dois livros de poemas publicados: Instantâneos do cotidiano (2020) e Aporia (2023).


Por que razão resolveu ir para o mar?

 

Resolveu ir para o mar.

Partiu de sua ilha,

num nevoeiro espesso.

 

Não temia o uivo do vento,

ser castigado pela fúria da tempestade,

ser tragado pelas ondas do oceano.

 

Montanhas de água erguiam-se e quebravam-se.

O mastro arqueava, a água subia no convés,

a embarcação sacolejava.

 

As tormentas eram permanentes,

incidentes inexplicáveis ocorriam,

ataques de selvagens de estranhas tezes tatuadas.


Seguiu viagem, em busca de maravilhas

levado pela corrente marítima,

deparou, amiúde, com o comércio de almas.


Não se amparou na luz de nenhum farol.

Não encontrou nenhuma ilha bem-afortunada,

para ancorar seu barco combalido, à deriva.


Foi para o mar para afastar a ameaça do vazio,

aquele sentimento incômodo da vida ser 

nada mais que um desperdício de dias.                                                                    



 Navegação

 

Singrando devagar um mar sonolento

– mergulhado em sua melancolia –,

o nauta atravessa o convés continuamente,

cada extremo da embarcação.

Da proa à popa,

mira as águas a serem vencidas pela nau,

expande-se no espaço;

despede-se das águas escorrendo para trás,

consome-se no tempo.

A solidão é intolerável.

A intensa concentração do eu

na imensidão do mundo líquido

afoga o infinito de sua alma

nas profundezas do desconhecido.

O mar é uma perene incógnita,

com suas magníficas matizes de azul,

esconde traiçoeiramente temíveis criaturas.

 

 

 Ao farol

 

“O Farol era, então, uma torre prateada em meio à névoa, com um olho amarelo que se abria rápida e suavemente à noite.” (Virgínia Woolf – Rumo ao Farol)

 

_ Enfim, vamos ao Farol?

_Após tantas mortes?

O que faremos lá?

Arriscaremos extinguir nossas vidas

nos atirando ao encontro de algum rochedo

nesse mar bravio?

Muitos se foram.

O ambiente está empoeirado.

O que resta é um pouco de luz verde-acinzentada

e sombras perambulando pelas paredes.

O faroleiro não deseja nossa companhia

com jornais e revistas.

Não quer que nossas ruínas entrem no seu lar

e acabe com o encanto de sua solidão.

Prefere ficar sozinho admirando o mar...