sexta-feira, 26 de agosto de 2022

HIMALAIA

 


O modo como a aérea folha
cai,
o sintoma do musgo sobre
a pedra,
o deslizar das dunas no
deserto,
o olhar do gato mirando
o vazio,
o que assombra e simula
desnutrindo
as digitais do dia
deixado às suas próprias expensas
talvez não anule nem redima
todos os nossos infartos.
A folha, o musgo, as dunas, o gato
diligentemente prosseguem
sua indefensável tarefa
e assim desnudos
talvez acendam
a incandescência mineral
dos picos do Himalaia.
( Desenho: Cleber Pacheco).

domingo, 21 de agosto de 2022

YGGDRASIL

 


A árvore dos mundos desvela
início e fim dos tempos.
Sorve seiva, transpira resinas,
acolhe aves e deuses
na licenciosidade de seus ramos.
É mais densa sua sombra
que o regurgitar
dos frutos na avidez
de estranha flora.
Não se corta o seu tronco,
não se depura a sua casca,
não se maceram
elixires e unguentos.
É cítrico seu aroma,
ácido seu sabor,
desvairada sua forma flagrada
por loucos e videntes
desnutridos de razão.
Materializam-se suas carnes
no assombro
da circuncisão do tempo.
Frutos e raízes descamadas
no transbordamento
dos sentidos,
brotam e transmutam
bençãos, maldições
nos mundos descarnados
no infinito das eras.
Desmembra,
a nua árvore,
a nitidez do quaternário:
estações, elementos, direções ,
mapas e cartas náuticas
a se desmentirem
no desventrado dos possíveis
inaugurando
as artes do improvável.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

MUNDO

 


Num mundo todo oco
é, a pedra, invertebrada,
vazio que evoca
memória inventada.
Num mundo todo vivo
o tempo esqueceu:
viver é desatino,
flor sem gineceu.
O mundo sempre desbota
o tangível e o que tange,
é mão que nunca brota,
dedo sem falange.
O mundo nunca suspeita
do seu duplo assassinato.
Diz sua demência:
"quando morro, mato."
(foto: Cleber Pacheco).

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Resenha

 


    Para quem ama os livros  ou gosta de história antiga, o livro O Infinito em um Junco de  Irene Vallejo é um prato cheio.

    A autora aborda a invenção do livro no mundo antigo  tendo como ponto de partida a Biblioteca de Alexandria, por si só fascinante. Além disso, dá ênfase ao mundo grego e ao helenismo, bem como ao império romano.

   A invenção do papiro, a catalogação, como surgiram os códices, o uso do título, a presença do nome do autor no texto, o sumário e uma infinidade de detalhes é explorada de modo saboroso. A leitura e agradável e leve, apesar da profundidade, pois  a autora também  comenta livros de outras épocas,  conta suas experiências como leitora, faz uma reflexão a respeito das origens dos livros e suas possibilidades futuras.  Não se trata de um texto acadêmico frio e formal. A paixão pelos livros é ressaltada em cada linha e conseguimos absorver  o interesse  e o encanto que ela sente pela leitura. 

   Com detalhes muito interessantes e minúcias que enriquecem o livro, acabamos mergulhando em suas páginas atraídos pelo fascínio que os livros exercem  sobre nós. 

   Homero,  Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Virgílio, Sêneca Plauto e Terêncio, Safo, assim como  Paul Auster,  Lawrence Durrel, Proust e muitos outros  são comentados ,trazendo uma nova luz sobre os autores.

    É difícil parar de ler e,ao mesmo tempo, não queremos que acabe. Por aí já se percebe que se trata de uma obra  de fato interessante. 

sábado, 13 de agosto de 2022

Hespérides

 


O inverno recolhe e exige
o inviável : pomos de ouro
nas cascas do nu,
brotos abertos
muito além da nudez:
sumo sem frutos,
seiva sem árvores
na fotossíntese do nada
A floresta desprovida exila
a floresta imaginária,
troncos mudos de espanto
desenham o eco dos surdos,
a floresta sem símbolos dessora
os contornos do claro,
seu transtorno aniquila e anula
o âmago do áspero,
desveste e restaura
as sementes da flora
fermentando o húmus do frígido
nos solos do ermo.

.(Foto by Cleber Pacheco).

terça-feira, 9 de agosto de 2022

BREAKFAST

 


Pela manhã bebes o veneno
que o dia te oferece.
Cortas as unhas,
repartes o cabelo,
a vida é tão normal
que até o diabo se entedia.
Imploras aos santos
que a chuva venha,
a tarde seja agradável,
que o chá das cinco
seja saboroso e acrescentas
duas gotinhas de limão.
À noite trocas farpas e amenidades
com os circundantes
e a seguir põe-te a roncar
em comovente beatitude.
Os dias passam por ti
ilesos e carunchados
mesmo quando o orvalho os toca.
Medes a temperatura, a pressão,
vais ao médico e pedes,
servil, que carinhosamente sejam retiradas
as pedras dos teus rins.
O tempo transcorre fagueiro
e um dia tua boca murcha,
teus dentes caem
e já não ouves com a mesma
precisão de antes.
Até que certa manhã, despertas
e recusas o veneno
que o dia te oferece.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

O Mago

 

Fragmentos decifro
com descuidado zelo:
livros de areia,
bibliotecas de gelo.
Das veias linhas obtenho,
as quatro direções costuro
parindo pontos cardeais
na cartografia do escuro.
As cavidades do corpo
traçam a anatomia do medo ;
na medula da alma,
a transfusão do segredo.

Convoco nunca e sempre
numa só aparição
e o impossível se retrata
às vezes sim, outras não.