domingo, 6 de novembro de 2016

Carta de Clarice Lispector a uma amiga


    estou procurando,estou procurando,estou tentando entender.Cheguei até a casa,o retorno ao lar, pasma e muda,desinquieta.É que eu não imaginava a possibilidade do acontecido, o inesperado bom também acontece. Fico buscando a palavra-isca para alcançar as entrelinhas, mas esta tarde transmigra-se em outra e a coisa me escapa em contínuo fluxo de espanto e cólica.
   Lá estava,sozinha,pelo Jardim Botânico,disposta a dar um passeio.Eis que fui tomada de assalto e fiquei ali,desarticulada,em meio á exuberância vegetal,presa ao murmúrio da fonte de água,sentindo o sol,a azulescência do céu,os passantes e,imóvel,em estado de choque e aleluia,não podia reagir.O que era? Ai,estou perdida,foi só o que pude pensar Talvez os tons de verde,as formas da flora, o  desatino das flores, a singularidade do ar,o despreparo do instante tenham me provocado tamanho desconcerto.
   Sem cálculo,fui jogada á extrema crueza do mundo e á sua carne viscosa.Um cego,um cego havia e ai! passou diante dos meus olhos tateando o ar feito um demente,um perdido,um caduco Tirésias, uma cicatriz
 e a tarde despendeu seu grito trincando o tímpano do dia. Preciso de um socorro, quase gritei e mais calada tornei-me,eu, a desentendida.
   Quanto tempo durou? Uma eternidade,um átimo.
   Um custo recuperar-me. E nem me recuperei ainda.
   Daqui a pouco começo a escrever um conto intitulado Amor.  Para ver se obtenho um lamento,o gozo da glória ou somente um modo de amenizar o susto,a dor,o pasmo,a delícia,o diabólico,o divino, a agonia, o êxtase,o
 
     
   

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