segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

IDENTIDADE (terceira parte)

Detive-me a observá-lo. Inacabável parecia a tarefa.Espantei-me,chegando a acreditar que preencheria todo o chão caso não fosse impedido.Passei a ponderar a possibilidade de um caso de grafomania.Como sequer chegara a aprender o ato de escrever propriamente dito,limitava-se a expelir vagas formas que talvez pudessem ter remoto significado apenas para ele.
Abandonara as afirmações e passara ao reino das hipóteses.
Outra vez perto , aguardei. Caso se confirmasse, representaria algum progresso. Então lembrei que, durante a consulta,manifestara ela uma grande preocupação em interpretar os desenhos.Poderia existir um caminho de acesso até ele,uma porta conduzindo a algum aposento aparentemente esquecido onde o encontraríamos,uma chave.Aquilo me chamara a atenção e fora esquecido por mim.Intuitivamente percebi a importância do fato.Talvez devesse voltar meus esforços com maior cuidado para as inscrições que ele teimava em produzir compulsivamente com enorme rapidez.
Surpreendido fui, repentinamente, por inusitado procedimento.
Tendo concluído a tarefa, sobre as estranhas formas deitou-se, ficando imóvel, em estado cataléptico, mumificado quase. Aparentava ter abandonado em definitivo o inútil corpo e qualquer remoto contato com o âmbito material.
Sem sinais vitais permaneceu.
Idêntica e inversamente, sem qualquer aviso, ergueu-se,encarando-me por um segundo.Um segundo com aspecto de eternidade,de atalho para o infinito. Em seguida voltou ao abrigo e recolhimento de costume, sentado, inteiramente ocluso.
Chocado fiquei, sem entender nada. Desconjuntara-me aquele olhar.
Perdera a capacidade de reagir.
Salvou-me outra vez a intuição. Relativamente bem desenvolvida,podia confiar nela.
Compreendi, sem saber como ou por qual motivo: quem devia deitar-se sobre o desenho era eu.Tratava-se de inquestionável certeza.
Aturdido, demorei a tomar uma atitude. Pouco a pouco assimilando fui a idéia,embora com severa desconfiança a respeito do ridículo da situação.
Fiz um movimento.
Estirei-me.
Cerrando as pálpebras, tragado fui por singular força.
Enxurrada de cores inundou minha mente, intensa, numa variedade nunca vista, singular luminescência,originais tonalidades, substituídas ,com estonteante rapidez, por formas geométricas em profusão vertiginosa:losangos,triângulos,retângulos,quadrados,heptágonos, dodecaedros,icoságonos.Infindáveis.
Senti-me arrastado para algum lugar, atraído de modo irremediável,querendo ir e tentando ficar,resistindo e rendendo-me sem remédio.
Fosforescências luminosas surgiram a seguir, transmutadas em círculos a se abrirem,conduzindo a quadrante específico e definido.
Tratava-se de um Portal.
Compreendi: entrando estava num outro estado de consciência.
Qual, sequer imaginava. Pessoa alguma poderia afirmar com exatidão quantos de fato existiriam. Limitava-me a seguir, ou melhor, deixar-me conduzir, ser tragado por interminável vórtice a lançar-me ao ignoto. O impedimento de continuar foi provocado por desconhecida causa.
Uma barreira, algum obstáculo, manifestara-se. Desprevenido, busquei descobrir o motivo de tal impedimento. Havia um núcleo escuro e denso à minha frente ou ao meu redor, difícil definir. Não precisei investigar para irem acontecendo as insólitas descobertas. O próprio desenrolar dos acontecimentos iam-nas revelando.
Criaturas de bizarro aspecto formavam massa compacta, causando espanto e pasmo.Não se poderia afirmar que fossem humanas nem desumanas, a qual espécie pertenciam; se boas ou más.Existiam.E pareciam estar ali com o único propósito de dificultarem minha travessia ao outro lado do Portal.
Tenso, imaginei se sofreria investidas, ataques, agressões.Teria de defender-me,pedir auxílio,utilizar recursos familiares para evitar danos.Qual atitude tomar ainda vasculhava em meu íntimo.Informações possuía a respeito de riscos e perigos de experiências no âmbito do desconhecido.Em eras antigas muitos morreram tentando mapeá-lo,abrindo o acesso aos demais investigadores e batedores dos planos sutis.Trabalho executado por velhos xamãs,videntes,yogues,santos.Um inacreditável desafio mesmo para os mais experientes.
Outra inesperada descoberta fiz ao ter a percepção aguçada e ampliada. Tratava-se de elementais.O grupo à minha espera consistia deles, seres intermediários, situados entre o mundo natural e humano.Se mantivesse um comportamento adequado,evitaria problemas e desastrosas consequências.Tinha como defender-me.Alívio senti.
Todavia,nova compreensão fluiu,fazendo-me crer que o caso era outro.Aqueles elementais provinham de mim mesmo,de minhas formas-pensamento,dos meus próprios sentimentos alimentados por desejos,impulsos,crenças,ações.Jamais poderia conceber ser eu mesmo a origem e fonte de tantos.Sim,já lera a respeito.Estar frente a frente com fruto do meu viver diário tornava o acontecimento muito diferente.
Para completar a travessia, precisava tomar uma atitude, tive certeza. Lancei sobre eles intensa luz, usando de toda a capacidade disponível, sem atacá-los ou feri-los. Lentamente foram se dissolvendo,amenizando,fluindo.Uns simplesmente desapareceram; outros,suavizaram-se.Abriu-se o caminho.
Atravessei.
Intensa claridade surgiu, expandindo-se aos poucos, trazendo consigo a sensação de leveza e de elevação.Senti-me subir,subir indefinidamente,de modo interminável.Sons semelhantes a notas musicais ressoavam .Tinha a sensação de ser aguardado por alguém e de que precisava realizar alguma coisa,uma tarefa,um desígnio muito importante,decisivo ato .Dependeria de mim o êxito ou o fracasso daquilo que ainda estava por vir.
Qual missão, sequer imaginava.
Floresceu a luminosidade, atrativa ,quase cegante. Não fui mariposa a consumir-se na chama. Do recôndito dela é que foi projetado algo ou alguém. Esperei.
Do interior da radiância, transfiguradora imagem de um ser de inenarrável beleza aflorou. Deslumbrado, perdi toda e qualquer possibilidade de reagir. Incondicional, a rendição.
De imediato senti a conexão estabelecer-se entre nós, elo completo e definido, bem como uma transmissão,como se fosse eu um receptáculo, embora não conseguisse tornar nítida e clara a mensagem. Limitava-me a receber em imensa profusão,ignorando inteiramente o conteúdo.
Imensurável a quantidade.
Símbolos, códigos, figuras depositavam-se em minhas entranhas - se é que se poderia dizer isso-,abundantes,ficando decalcadas,impressas,gravadas em indefinido ponto,ocultas e seladas com o maior cuidado,como se,num Apocalipse ao contrário,cada Selo fosse sendo fechado ao invés de aberto.Muito além de enciclopédia,uma biblioteca inteira era inserida,transposta,transmigrada para mim.

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