sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Resenha


  O escritor e ator W. J. Solha faz uma resenha do meu livro INTERSECÇÕES. 

O INTERSECÇÕES, de Cleber Pacheco - TAL COMO O BRASIL – NÃO É PRA PRINCIPIANTES. Há muito eu não via uma inovação literária tão radical quanto a desse romance – editora Penalux, 2016. Estamos longe da novidade da narrativa fracionada em verbetes, como no Dicionário Kazar, de MiloradPavitch, que é de 84; da história que admite várias ordens de capítulos na leitura, como no Jogo da Amarelinha, do Cortázar, de 63; do romance com cada capítulo em seu próprio estilo , como no mais distante ainda Ulisses, de Joyce – de 22; e longe até mesmo do realismo mágico de Cem Anos de Solidão, García Márquez – de 67. Acho que a última obra nessa linha, no Brasil, foi o Avalovara, de Osman Lins, de 73, com sua estrutura baseada no quadrado SATOR. Ou: Não: meu romance Israel Rêmora, de 75 - Prêmio Fernando Chinaglia de 74, é algo como esse Intersecções antes da desintegração nuclear promovida por Cleber Pacheco: os capítulos - intermediados, sempre, por poemas que são monólogos do protagonista - não têm nada a ver uns com os outros, a não ser pelo personagem que têm em comum.
Bem, o fato é que eu dava o experimentalismo , por esse enorme hiato até o Intersecções, como findo. Morto e enterrado.
Mas o que vem a ser a sua inovação? Eu falei em desintegração nuclear. Mas é melhor pensar nos 930 fragmentos de manuscritos hebraicos, aramaicos, e gregos encontrados em Qumran, datados de 250 a.C., conhecidos como do Mar Morto. Fragmentos, eu disse. O texto de Intersecções é cheio de lacunas. A impressão é a de que Cleber Pacheco, depois de produzir seu romance, que me lembra o Cântico dos Cânticos – em que um versículo é sobre a amada, no caso Margarida ( ligada às flores), o outro, do amado ( Pedro, ligado às pedras, como no evangélico “Pedro tu és pedra” ) - saiu deletando as vinculações mais óbvias entre os trechos.
Mas a quarta capa entrega o que vem, afinal, a ser o livro: “A trajetória de um casal, da infância à velhice”.
Infância.
Isso explica o primeiro período, que tem qualquer coisa de esforço de memória. Sabemos, ao reler o romance, que é Pedro quem conta:
“Está escuro. Há uma bruma que aos poucos vai se dissolvendo. (...) E ela está aqui, ela veio. De onde surgiu? Não sei. Apenas constato a sua presença.”
Pausa. E é a vez de Margarida:
“Isto é o alvorecer. Há uma flor e uma rocha. Ambas em silêncio. Após a escuridão, surge um vulto logo à frente: é ele.”
Esse alvorecer passa a ser simbólico, tal como a flor e a rocha, que são os dois - Margarida e Pedro.
Aí a velhice é explícita:
“O velho guardou sua dentadura”.
“A velha guardou seus óculos”.
Na primeira página do livro há quatro citações, todas enfatizando a importância das fábulas. A última, de Chesterton, é genial:
- Contos de fadas são a pura verdade: não porque nos contam que os dragões existem, mas porque nos contam que eles podem ser vencidos,.
Bem a propósito. Em todo o livro há marcas – suponho que da infância do autor - tanto desses contos, como da Bíblia e de outras fontes místicas, como a mencionada Tabula Smeragdina de Hermes Trismegisto.
Isto está na página 63, com qualquer coisa do "Qualquer coisa" de Caetano, em que "pra lá de Marrakesh " leva a canção a dizer "que mexe qualquer coisa dentro, mexe / Já qualquer coisa, doida, dentro mexe/ sem essa aranha, sem essa aranha, sem essa aranha! Nem a sanha arranha o carro / Nem o sarro arranha a Espanha"
Pedro:
“Estou tentando encontrar a dracma perdida. As dez virgens esqueceram de colocar azeite nas lamparinas. Era estéril a figueira e foi amaldiçoada”.
Na página seguinte, Pedro de novo:
“ Joguei pérolas aos porcos”.
Confesso que não sei se ele simplesmente disse a frase metafórica do evangelho de Mateus, ou - sutilmente - nos remeteu à palavra "pérolas" em latim: Nolitemittere MARGARITAS ante porcos.
E Margarida:
“Mordi a maçã envenenada”.
E ele:
“Eu sou o filho pródigo?”
Ela:
“Espetei a ponta do dedo na roca.”
É a bela... adormecida.
Como no Ying e Yang, os dois se completam.
E, como no lance de Chesterton, no qual os dragões não existem, mas as fábulas mostram que podem ser vencidos, na página 76 há uma menção a “João e Maria”, com a metáfora da morte dando à luz uma providência real:
- Perdi, no caminho, os pedaços de pão. Vieram os pássaros e os comeram. Acabarei na casa das bruxas. Vou doar minhas córneas.
E o duplo fracasso em que redundou suas vidas, vem assim:
“Não encontrei o pote de ouro no final do arco-íris”.
“O que faço, Conto até dez? Conto carneiros?”
“Aguardo a foice.”
Apesar disso, o título da parte que se abre na página 83, já no final, é “Rosa e Diamante” – o que mostra que ao fim e ao cabo, os dois progrediram.
OK. O final. O que não é dito, o tempo todo, acaba dando à prosa um tom de poema longo. Sugiro à editora Penalux( que editou meu último livro, DeuS e outros quarenta PrOblEMAS ) mudar a divulgação da nova obra, fazer como nos trailers de Hitchcock: “Não contem o final a ninguém!” ( como contei aqui ). “Não leia as resenhas, fique longe dos que dissecaram o livro!”
Mas eu o dissequei? Longe disso.
Página 89: o autor nos diz como tentou reproduzir a vida:
“Prossegue o rascunho dos dias”.
Página 43:
“Ele agora pensa ´Tudo o que eu digo é prefácio ou posfácio. Não sei onde ficará a obra”.
Mas vamos encerrando. Veja isto ( páginas 81 e 82 ): É um poema, cada frase dita depois de enorme pausa:
“ Não há abracadabra. // Não há palavras cabalísticas neste instante. // Preciso trocar a senha. // Preciso ser alfabetizada. // Vou aprender arte rupestre. // Vou inventar a escrita cuneiforme. // Quem sabe eu receba a tábua dos dez mandamentos.// Quem sabe eu encontre a pedra de Roseta”.







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