quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Abandono


   O olhar irritado do dono da livraria faz com que eu me retire. Nenhum livro levo comigo.Nunca compro.Só preciso estar ali de vez em quando. Ou no local onde fazem sanduíches. Costumo comer sozinho. Ou na praça,onde admiro a chafariz e a seguir me afasto. Visitar sempre os mesmos lugares fornece uma falsa sensação de familiaridade.De fato falsa,pois sempre me olham com hostilidade e acabo me retirando.Mesmo que permaneça sempre num silêncio discreto.
   Vejo agora a mulher solitária a perambular também pelas ruas,sem rumo. Talvez esteja bêbada. Reconheço os solitários a quilômetros. Todos conseguem sustentar o mesmo aspecto devastado de quem não tem para onde ir.
   Então aproxima-se um carro com dois desconhecidos dentro. Eles param e me oferecem uma carona. Algo parecido nunca aconteceu antes. Ambos mantêm aquele ar desolado  semelhante ao meu. Aceito.Entro e damos voltas sem trocar uma só palavra.
  Súbito o carro vai rumando para a saída da cidade. Na calçada avistamos um garoto,com aspecto sujo. O carro aproxima-se dele,um dos passageiros abre a porta,o menino entra.
  Seguimos até nos afastarmos completamente de qualquer vestígio de civilização.
   Na quietude da noite, os pneus deslizam sobre o asfalto.
   Depois de horas, avistamos uma descida e o mar lá embaixo. Sem motivo aparente,estacionamos.
   Desço até a praia,percebo que o garoto me segue. Num impulso,seguro a mão dele e trilhamos o caminho sem olhar um para o outro. Ele aperta os meus dedos.
   Ao chegarmos,descobrimos uma construção de pedra.Abandonada.
  Entramos,explorando o espaço. Ele não larga a minha mão. Não há nada ali para ver.Apenas paredes e janelas trancadas. Pelas vidraças contemplamos o mover das águas.
   Com habilidade,largo-o, puxo a porta emperrada que ele não conseguirá abrir e o abandono sozinho lá dentro.
   Vejo pela última vez o rosto de olhos apavorados.
    Volto a subir.Embarco no carro ainda à minha espera.
    Partimos.

(imagem: Google)

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