Maya Falks é escritora desde sempre. Com formação em publicidade, jornalismo e letras, atua como leitora crítica e resenhista, coordenando os projetos Bibliofilia Cotidiana e Escritório Literário. Foi vencedora do Prêmio Vivita Cartier em 2021 e finalista do Prêmio AGES 2023, além de patrona da Feira do Livro de Caxias do Sul em 2022.
Boleto
Certa
vez minha mãe me disse que a única coisa na vida que é inevitável é a morte.
Acreditei nisso até atingir a idade adulta, quando descobri que a morte é
apenas a última coisa inevitável. Antes da morte, para quem não se vai jovem demais,
vem o boleto.
A
inevitabilidade do boleto é tão concreta quanto a morte. Embora a morte ainda
seja, enquanto entidade com uma foice na mão, imensamente menos concreta do que
aquele maldito código de barras que, uma vez sob o leitor, nos coloca em um
espiral de desespero que só pode ser descrito por Augusto dos Anjos. Ou talvez
Kafka, na agonia excruciante da transformação de Gregor Samsa em inseto, igual
sente nosso âmago na transformação do débito na aniquilação de sonhos, no
esvaziamento feroz e sádico de nossas contas bancárias, na usurpação maligna de
22 dias úteis do nosso suor.
Há
quem tenha medo da morte sim, e não os condeno, mas nada pode ser mais
aterrorizante que o boleto. A taquicardia que marca os dias que antecedem o
vencimento somado à noite insone em pranto incessante depois de realizada a
transação. Clonazepam na veia. Mês que vem tem mais. E no outro. E no outro.
O
boleto é a morte mensal, a morte a conta-gotas, a morte à moda Jack, o
Estripador – pedacinho por pedacinho. Vamos padecendo do mal moderno das
promessas nunca cumpridas de que, findado esse boleto, não nos colocaremos
outra vez nessa mesma teia de tensões digna de um filme de terror. E lá estamos
nós, na vitrine. Mês que vem o leitor fará seu “bip” e nosso primeiro
“inevitável” rirá da nossa cara, com seus dentes de risquinhos finos, grossos,
finos, grossos, para nos provar que inevitável não é a morte, é a
vida.
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