AUTOR CONVIDADO
Krishnamurti Góes dos Anjos. É baiano de Salvador. Escritor
e pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado
– Contos, Um
Novo Século – Contos, Embriagado
Intelecto e outros contos e Doze
Contos & meio Poema. Tem
participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de
Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas literárias na
Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro
publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho -, obteve o
primeiro lugar no Concurso Internacional Prêmio Jose de Alencar da União
Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
A masseira estava vazia e Diógenes aguardava o servente trazer a massa
para o reboco da parede. Enterrou a colher de pedreiro no resto da massa e
sentou-se em uma pilha de blocos. O pensamento começou a divagar. Escorregava
de um assunto ao outro e ele buscava concentrar-se somente no quanto faltava
para a conclusão do serviço. Entretanto a mente trazia-lhe do inconsciente,
rudimentos do passado. Sedimentos de sua vida. A princípio surgiam
repentinamente imagens deliciosas... A tranqüilidade da superfície do açude.
Espelho refletindo as nuvens. Árvores, bois no pasto, as casas da fazenda, da
farinha, os alojamentos. Campos imensos de plantação de café. Escutou também
estranhos sons, vozes dos trabalhadores, cantigas, a mãe rezando o Pai nosso,
ensinando-o a esperar o que o padre disse que Deus prometera. “Ah é nosso
destino filho”. Mas não havia continuidade naquelas lembranças imprecisas. Eram
pontos nebulosos, estrelas longínquas brilhando no universo vazio.
Maluquices
que vinham, fugiam, tornavam a voltar. Diógenes tenta arredá-las com cálculos
do quanto haveria de ganhar naquela semana. Derivações e associações mentais.
Os disparates continuavam a persegui-lo. Lentamente emergiam fantasmas de outro
tempo quando ele labutava na colheita do café. A impertinência da memória
termina por arrastá-lo para Adelaide.
Sentiu
qualquer coisa palpitar-lhe no coração quando a viu pela primeira vez, e
depois, sempre um alvoroço quando tinham que colher café no mesmo campo... os
olhares rápidos e esquivos... e quando fizeram amizade, aquele tom da voz dela.
Saia brando e até quase meigo, muito meigo. Entenderam-se, apesar da vigilância
da gente dela e das advertências da mãe dele. Inflamaram-se, cambiaram acenos,
gestos e bilhetes. Marcaram encontros às escondidas. A ansiedade crescente os
fez desistir da prudência, a urgência de enlevo terminou por infringir a moral
apreendida. E tudo terminou acontecendo: o fogo da paixão mostrou-lhes o lago
do instinto consumado.
Refletindo
agora sobre tudo aquilo, era-lhe difícil decifrar o desconchavo daquele
passado. Daqueles farrapos de sensações esvaídas que modificara-lhes, em plena
adolescência, o curso das existências. Seria isso o tal destino que sua mãe
tanto falara? Lembrava-se que Adelaide ficara confusa, irritada, aborrecida.
Mal consigo e mal com ele. Tentaram agarrar-se numa esperança frágil. Ela não
haveria de engravidar. Foi uma vez só. – tanto se ilude a vontade! – Ela
começou a engordar muito em poucos meses, a barriga começou a empinar,
crescendo e trazendo junto a ameaça de desabar sobre eles a chuva grossa do
escândalo, o aguaceiro das fofocas, motes e dichotes. O casamento às pressas
foi o vento que empurrou as nuvens carregadas. Tudo rápido, tão depressa, que
quando os pés dela começaram a inchar e o vestido já subia na frente mostrando
mais as pernas, eles já se tinham retirado para a terra prometida. A capital.
Residência: barraco de favela. Profissões; ele servente de obras. Ela
doméstica. Depois o parto. E a imagem dela, magra e pálida dando o peito à
menina que nascera, foi a segunda lição imposta pelo ardiloso destino. A
primeira lição relacionava-se com esta também pelo berço. Pais e filha nascidos
irremediavelmente pobres.
Aquelas
memórias da roça cruzavam-se, confundiam-se com a mais recente da pequena Adelice
que já ia nos seus oito anos. A filha, já há dias pedira-lhe uma bicicleta...
idéias truncadas. Tumultos de reminiscências. Hoje, debaixo daquele viver
asfixiante, incerto, de trabalho sem carteira assinada, já duvidava – porque
voltou a lembrar-se de Adelaide – se era mesmo amor aquilo que ele um dia
pensou sentir por ela. Era isso a vida do amor?
Diógenes
sentia-se atordoado, desesperado, com vontade de... de... nem sabia o quê. Não
encontrava o que fazer. Teria enfim “destino” domado de uma vez o agreste
matuto colhedor de café? Na capital, Diógenes como boi de rebanho, ia onde o
impelisse o trabalho, de uma obra à outra. Por fora somente um ou outro muxoxo.
Sentia impotência e irritação. Como ele gostaria de protestar aos berros,
cuspir naquela situação suja e injusta. Mas essas intenções ocultas só se
desvendavam naquele instante, por muxoxos, por um imperceptível tremor nas mãos
e graves vincos faciais que iam a cada dia desenhando-lhe rugas. Por fora
resmungos. Por dentro um turbilhão de revoltas entremeadas de desejos e
necessidades, rosnando obscenidades que ninguém percebia.
No
burburinho que lhe enchia o cérebro, a reclamação áspera do mestre de obras
avultava e trazia-lhe mais uma vez do passado, as ameaças e os gritos do
capataz da fazenda:
-
Este reboco tem que ficar pronto hoje, ô Diógenes! Nessa moleza é que não fica!
Diógenes
levantou-se, mexeu com a colher a massa, e atirou com raiva uma porção dela na
parede, para logo a seguir, alisá-la, nivelando a parede muito docemente. É que
ele acabara de atinar que talvez, pudesse barganhar o preço de uma bicicleta
que vira na feira do rolo.
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